29 dezembro 2006

O TAGV deseja-lhe Feliz Ano Novo

[Arquivo-TAGV]

Postal TAGV, design Joana Monteiro/FBA, Dezembro de 2006.

28 dezembro 2006

TAGV aposta no mecenato

[Recorte-TAGV]

Portas de Vidro, TAGV: foto de Gonçalo Luciano (Novembro 2006).

É a necessidade que mais contribui para aguçar o engenho. No TAGV, o subfinanciamento de que padece há anos contribuiu para uma aposta forte e concertada no mecenato cultural. O diagnóstico está feito e resume–se a uma palavra: subfinanciamento. O mal de que padece o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, parece ser proporcionalmente inverso ao reconhecimento público praticamente generalizado da importância fundamental que assume na dinamização cultural da cidade.

Impedido de aceder aos apoios regulares do Ministério da Cultura para entidades congéneres - por se tratar de uma sala de espectáculos juridicamente vinculada à Universidade de Coimbra, num estatuto sui generis na cena portuguesa -, e a sofrer as consequências dos crescentes cortes orçamentais para o ensino superior, bem como a falta de entendimento da centralidade da sua acção por parte da autarquia, o TAGV está a apostar num programa de mecenato cultural.

Apresentado a cerca de três dezenas de empresas/instituições de Coimbra, “algumas das quais mostraram interesse”, o projecto irá agora ser mais aprofundadamente debatido com três dessas entidades. De acordo com Manuel Portela, director do TAGV, nos últimos 10 anos o teatro beneficiou de “três ou quatro apoios sempre pontuais”, que “não foram concedidos a longo prazo, nem com base numa parceria continuada”.

Por essa razão, o projecto de mecenato cultural foi agora relançado, numa aposta forte e concertada, “dando a conhecer a actividade do teatro e mostrando que há interesse, em termos de visibilidade, para uma empresa se associar à actividade do TAGV, patrocinando um festival, um espectáculo ou patrocinando em aberto a programação do teatro durante o ano”, disse o responsável. Para o director do TAGV, “é este tipo de dinâmica que é necessário ter para depois dizer, com propriedade, que as empresas em Coimbra não estão interessadas em patrocinar as artes”.

A concretização do projecto teve início há pouco mais de um mês, tendo sido feitos contactos com empresas e instituições de Coimbra, para o que foi utilizada uma publicação que conta a história do TAGV - a mais recuada e a mais recente -, apresentando ainda os projectos em curso e “sugerindo que as empresas que queiram associar–se ao teatro como mecenas patrocinem directamente algum desses projectos”.

E Manuel Portela explicou como poderão fazê–lo: “seria óptimo que fosse possível ter empresas que patrocinassem o programa de dança ou o programa de teatro com 10 mil/15 mil euros anuais”. Isto permitiria, ainda de acordo com o responsável, “fazer uma programação em certas áreas em que é muito difícil programar com regularidade sem haver um orçamento para a programação”.

Mas existem outras opções. “Estamos a tentar pôr de pé o serviço educativo, pelo que seria óptimo se algum mecenas quisesse assumir o patrocínio dessa área, que nem precisa de muitos meios”, disse Manuel Portela, realçando o facto, grave, de o teatro não ter absolutamente meios para o pôr a funcionar.

A questão é que “todos os projectos em curso estão muito acima das capacidades financeiras do TAGV”. Portanto, para ser possível manter esses projectos, “é absolutamente necessário aumentar o orçamento”. Referindo–se à crença que mantém no projecto que agora teve início, Manuel Portela foi peremptório: “Olhando para os outros teatros, não tenho nenhum motivo para não acreditar no programa de mecenato cultural”. E mesmo que o resultado não venha a revelar–se “muito significativo em termos do orçamento anual - pode ser de cinco ou seis por cento -, é ainda assim muito importante, também porque abre a possibilidade de crescer e alargar–se a outras áreas e colaborações”.

Um milhão de euros com ou sem fundação

Mas, como disse o director do TAGV, “custa–me acreditar que não haja ninguém que avance para o apoio ao Festival de Blues ou aos novos projectos para esta temporada, de que há a destacar um festival de dança, um festival de música antiga, um festival de música portuguesa contemporânea...”. Mesmo porque “só vão poder realizar–se se conseguirem patrocinadores, uma vez que o TAGV não tem orçamento para eles”.

Assumida pelo reitor da Universidade de Coimbra no discurso da cerimónia de abertura solene do ano lectivo, a “manutenção” do apoio ao TAGV foi entendida por Manuel Portela como “a intenção de conservar o teatro tal como ele existe”, embora entenda que, “com os cortes orçamentais que afectam o ensino superior, não é viável pensar que a Universidade de Coimbra terá capacidade para suportar um aumento grande do orçamento do teatro”.

A funcionar um pouco em “contraciclo” - o TAGV “está a tentar renovar–se e mudar um pouco a sua atitude de programação num momento em que os meios para esse tipo de atitude não existem” -, para Manuel Portela equacionar a hipótese de enquadrar o teatro numa fundação poderá não responder a todos os problemas.

Mesmo que haja outra solução jurídica, que se crie uma fundação e o TAGV fique sob a sua alçada, podendo assim concorrer a apoios do Instituto das Artes de que agora está privado, de acordo com o responsável pela sala da Universidade de Coimbra, “só será possível atingir um nível de excelência se o investimento no orçamento do teatro passar daquilo que são os 600 mil euros actuais para cerca de um milhão de euros”. Isto, pelo que é possível “perceber da economia e do financiamento do sector, analisando aquilo que se passa noutras instituições congéneres no país e na região”.

Lídia Pereira, As Beiras, 28-12-2006

22 dezembro 2006

genius loci: o espírito do lugar

[Máquina-TAGV]






Plateia, Palco, Teia, TAGV: Fotos de Gonçalo Luciano (Novembro 2006).

Ao Teatro é preciso imaginá-lo vazio também. Desabitado pelos espíritos que o palco conjurou. E por aqueles que a plateia convocou. É preciso vê-lo como lugar definido pelo espaço de que o edifício se apropriou, dando-lhe a forma capaz de o associar a uma função específica. Quer dizer que, antes ainda da linguagem cénica que faz dele um lugar habitado, o edifício já fala a sua própria linguagem. É também essa linguagem arquitectónica que o define como lugar e cria uma predisposição para os espíritos que, temporariamente, o vêm habitar. Vazio, é como se não estivesse realmente vazio. É como se a sala oferecesse, ao mesmo tempo, os ecos de uma passagem anterior e a alucinação de uma passagem futura. Vemos a luz a recortar cadeiras, paredes, tectos, teia, palco. Percebemos a relação estrutural entre esses elementos. Imaginamos a propagação do som na quietude da sala. Recordando as vozes que ocuparam a plateia, misturando-se, na expectativa do silêncio e do escuro que lhes há-de prender a atenção. Na recordação imprecisa dessas vozes, sobreposta ao vazio próprio da sala, parece tomar forma o espírito do lugar enquanto máquina habitável.
MP

17 dezembro 2006

Fernando Lopes-Graça (1906-1994)

[Arquivo-TAGV]

Passam hoje cem anos sobre o nascimento de Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Ao longo de 2006, seis iniciativas assinalaram este centenário no TAGV: a 1 de Março foi interpretada a obra «História Trágico-Marítima» (para barítono solo e coro de contraltos, a partir de poemas de Miguel Torga), pela Orquestra Sinfónica Artave, dirigida pelo maestro Emílio César; a 27 de Abril, ouviram-se «Quatro Líricas Castelhanas» (de Gil Vicente, LG 219), «Três sonetos de Camões» (LG 168), «O Menino de Sua Mãe» (de Fernando Pessoa, LG 189), «As Mãos e os Frutos» (de Eugénio de Andrade, LG 211) e «Duas cancões populares», pela soprano Ana Ester Neves e pelo pianista João Paulo Santos; a 28 de Abril, ouviu-se o «Canto de Amor e Morte» (de 1961), pelo Quarteto Capela, com o pianista Miguel Borges Coelho; a 29 de Abril, António Rosado interpretou a Sonata n.º 3 e suites da sequência In Memoriam Bela Bartók; a 20 de Junho, o pianista José Eduardo Martins interpretou na íntegra as vinte peças de «Viagens na Minha Terra»; e a 11 de Dezembro foi inaugurada a exposição «Fernando Lopes-Graça (1906-2006)». O Teatro Académico de Gil Vicente associou-se deste modo aos inúmeros concertos e recitais que, ao longo de 2006, deram a conhecer a obra de um dos principais compositores portugueses, iluminando as múltiplas facetas do seu neoclassicismo etnográfico como justificação marxista da forma musical.
MP

16 dezembro 2006

Fazer acontecer

[Máquina-TAGV]


Gonçalo Luciano e Teresa Santos, TAGV, Serviços Artísticos : fotos de Maria Miguel Ferrão (28-07-2006).

Que peças da máquina são estas? A metástase dos papéis não ataca apenas os gabinetes da administração. Também a produção parece soçobrar nesse esforço para os conter e ordenar. É aqui, neste centro nervoso do Teatro, que as decisões de programação desencadeiam uma azáfama difícil de adivinhar olhando para o tempo momentaneamente parado pelas fotografias. A concentração da atenção, na pulsação de electrões no écran e no dossiê aberto sobre o colo, são duas formas de simbolizar um conjunto de gestos recorrentes. Digamos que esta metonímia é uma encenação adequada para representar o todo das inúmeras e variadas tarefas desta forma particular de trabalho. É aqui, de certo modo, que a programação se transforma em acção. E que a acção se transforma em informação. E que ambas, acção e informação, se transformam depois em arquivo e memória.

A reiteração desse antes, desse durante e desse depois estabelece a natureza cíclica da actividade do Teatro à medida que a programação toma forma. A grelha de produção mensal organiza os fluxos de trabalho dentro do Teatro e os fluxos de informação para fora do Teatro. Ao que entrou como proposta e como projecto foi dada a possibilidade de se ver apropriado, convertendo-se em agenda, em cartaz, em folha volante, em folha de sala. Ao que entrou como endereço e como contacto foi dada a possibilidade de se converter em viagem e em encontro. Ao que entrou como desenho e como planta foi dada a possibilidade de se converter em montagem. Trata-se então de organizar a evanescência essencial do espectáculo como acontecimento temporal. Isto é, tornar materialmente possível a sua efemeridade. Ou seja, coordenar os movimentos daqueles que estão destinados a encontrar-se a uma certa hora de um certo dia. Quer dizer, dar uma possibilidade ao destino. E, ao mesmo tempo, produzir antecipadamente os vestígios disso tudo, que hão-de ficar registados algures. Numa folha guardada no bolso por uma espectadora, num cartaz rasgado na parede, numa agenda caída numa poça de chuva.
MP

15 dezembro 2006

Mais (um) sonho (6 Dezembro 2006)

[Arquivo-TAGV]


Eis o muito que eu pensava conhecer de Wim Mertens:
A única fotografia que conheço dele:
Um homem, um piano. A música que entra no corpo de um homem através dos sons até aos frenéticos movimentos dos abismos (do ser). Às vezes a fotografia apresenta-se a cores e nela é-nos permitido deambular pelo movimento marítimo dos sonhos. Até que chega o violino a descarnar os sentidos da música.

Anabela Gonçalves

13 dezembro 2006

máquinas de escrever: a escrita ao vivo no TAGV

[Notícia-TAGV]


A série «máquinas de escrever» tem lugar no Café-Teatro ao longo de 2007. Todos os meses um/a escritor/a é convidado/a a falar sobre o seu processo criativo e a apresentar um texto inédito ou em pré-publicação. Como é que se escreve? Que mecanismos psíquicos e técnicos produzem um texto? A escrita não passa de reescrita? Como se finge a dor que se sente? Escrever é inventar ou é descobrir? A mão escreve sozinha? A personagem escreve-se a si mesma? De onde vêm as vozes? Quem escreve o eu que escreve? Que discursos o produzem? A escrita regista a própria escrita? O escritor é máquina escrevente, como refere Calvino? Como descrever esses processos? Com «máquinas de escrever» pretende-se espreitar o laboratório da escrita. Ver de que forma o sentido é um produto de um modo de escrita. E, vendo isso, celebrar no escrevível o vivível.

Entre os primeiros convidados estão Rui Zink, a 18 de Janeiro, Manuel da Silva Ramos, a 15 de Fevereiro, e Luísa Costa Gomes, a 30 de Março.
MP

12 dezembro 2006

Senses: música electrónica e multimédia no TAGV

[Notícia-TAGV]


O ciclo «Senses» pretende ser uma mostra de formas de criação contemporânea em que música e imagem se combinam em espectáculos multimédia. O trabalho com a materialidade digital será o denominador comum aos artistas a apresentar. Além de espectáculos, haverá a realização simultânea de mostras de vídeo, exposições, conferências, debates, showcases e workshops de criação de música digital, com o objectivo de alargar a interacção entre artistas e público. «Senses» decorre uma vez por mês, de Janeiro a Junho de 2007, e integra-se na programação TAGV Digital, dedicada à relação entre as artes do espectáculo e as novas tecnologias. «Senses» é uma organização do TAGV, com programação de Afonso Macedo e David Rodrigues.

No mês de Janeiro, o TAGV acolhe os projectos Xela (de John Twells) e Helios (de Keith Kenniff). Os espectáculos deste ciclo têm lugar na última ou penúltima quinta-feira de cada mês, de acordo com o calendário seguinte:
Senses 1, Quinta-feira, 25 Jan 2007
Senses 2, Quinta-feira, 22 Fev 2007
Senses 3, Quinta-feira, 22 Mar 2007
Senses 4, Quinta-feira, 19 Abr 2007
Senses 5, Quinta-feira, 24 Mai 2007
Senses 6, Quinta-feira, 21 Jun 2007

A 15 de Fevereiro, a programação TAGV Digital integra ainda «Itinerário do Sal», a ópera multimédia electro-acústica de Miguel Azguime e do Miso Ensemble, originalmente apresentada no Festival Música Viva 2006, a 21 de Outubro.
MP

11 dezembro 2006

Doc TAGV: ciclo de cinema documental

[Notícia-TAGV]

Fotograma de «À Espera da Europa» (2006), de Christine Reeh.

«DOC TAGV» é um ciclo de cinema documental, que terá lugar uma vez por mês. Pretende ser uma amostragem selectiva do documentário contemporâneo, com particular incidência na produção portuguesa. Além de procurar tirar partido dos vários festivais de cinema documental, a programação do ciclo «DOC TAGV» articular-se-á com a restante programação do Teatro e com temas da actualidade. O documentário constitui um modo particular de construção de sentido, caracterizado por um compromisso com a dimensão económica e social imediata da experiência humana. Ao pretender dar-nos o real como testemunho, o cinema documental reescreve, de acordo com a sua própria lógica, as convenções jornalísticas e as convenções ficcionais de representação do real. A questão da codificação narrativa das imagens, e portanto também dos seus modos de apropriação pelos espectadores, não pode por isso deixar de surgir em primeiro plano. Daí o valor inestimável da perspectiva documental como instrumento fílmico de construção do sentido.


O ciclo tem início com os filmes «Ainda há pastores?», de Jorge Pelicano, em Janeiro, e «Elogio ao 1/2», de Pedro Sena Nunes, em Fevereiro. Com excepção do mês de Março, as sessões terão lugar na primeira segunda-feira de cada mês, de acordo com o seguinte calendário:
DOC TAGV 1, Segunda-feira, 8 Jan 2007
DOC TAGV 2, Segunda-feira, 5 Fev 2007
DOC TAGV 3, Segunda-feira, 12 Mar 2007
DOC TAGV 4, Segunda-feira, 2 Abr 2007
DOC TAGV 5, Segunda-feira, 7 Mai 2007
DOC TAGV 6, Segunda-feira, 4 Jun 2007
DOC TAGV 7, Segunda-feira, 2 Jul 2007
MP

09 dezembro 2006

Hamlet transcodificado (8 Dezembro 2006)

[Crítica-TAGV]

[Hamlet] To die - to sleep.
To sleep - perchance to dream:
William Shakespeare, The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark (1604)

O Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) acaba de estrear a sua última produção, «Hamlets», numa brilhante encenação de Nicolau Antunes. O plural do título sugere bem o efeito desmultiplicador desta encenação. Com efeito, «Hamlets» encena o próprio processo de encenação, intensificando os dispositivos meta-teatrais do texto original e recodificando-os. Não vemos apenas o teatro dentro do teatro já contido no texto de 1604: vemos também um catálogo de linguagens de encenação e, até certo ponto, uma história abreviada de encenações recentes de «Hamlet». Neste aspecto, o trabalho de Nicolau Antunes é inteiramente pós-moderno, na medida em que é ao mesmo tempo paródico e meta-teatral, sem deixar de combinar essa característica com efeitos realistas ingénuos. Talvez o processo colectivo de criação e de aprendizagem dos próprios actores em formação tenha contribuído para a heterogeneidade interteatral e intersemiótica das referências. A múltipla codificação que ocorre em quase todas as cenas parece decorrer dessa partilha de códigos e sistemas de referência díspares e contraditórios. O efeito de colagem resultante é uma das evidentes qualidades desta encenação e o principal instrumento de exposição dos signos teatrais enquanto tais.

Rei Cláudio (António Mortágua) e Rainha Gertrudes (Carla Galvão), «Hamlets», TEUC, encenação de Nicolau Antunes: estreia-TAGV, 8 Dezembro 2006. Foto © TEUC

Hamlet (Nuno Geraldo) e Ofélia (Ana Beirão), «Hamlets», TEUC, encenação de Nicolau Antunes: estreia-TAGV, 8 Dezembro 2006. Foto © TEUC

A desmultiplicação a que o título alude começa desde logo na duplicação da personagem de Hamlet, interpretada por Nuno Geraldo e Raquel Cajão. O motivo do espelho e do duplo, explorado em vários momentos da peça - como acontece com frequência nos solilóquios -, tem assim equivalentes cenográficos e dramatúrgicos. Hamlet desdobrado em Hamlet & Hamlet pode falar e agir em duplicado, estabelecendo um contraponto constante entre gestos e falas ou funcionando como encarnação da sombra dilacerada da consciência, que o constitui como precursor da angústia individual da personagem moderna. A duplicação tem um dos seus momentos mais explícitos no solilóquio «ser ou não ser» (Acto III, Cena 1), quando as imagens vídeo de cada um dos Hamlet são projectadas, em alternância ou em sobreposição, na tela da sala. A auto-interrogação do sujeito, que o cinde em sujeito e objecto, e lhe permite dar expressão ao dilema da existência, que é simultaneamente moral e carnal, surge assim remultiplicada: dois corpos, dois rostos, duas vozes, mais as imagens ampliadas e amplificadas desse delírio que a consciência da brevidade da existência no mundo constitui. A evanescência das imagens projectadas aproxima-se da fúria sonora da linguagem verbal, prelúdio da morte do sono e do sono da morte. Para que esta cena seja cabalmente lida é ainda necessário atentar em pelo menos mais um código: o código da música rock, invocado pelo solo de guitarra eléctrica que acompanha o solilóquio. Nessa estética quase de vídeoclip, esta cena exemplifica bem a transcodificação que ocorre no conjunto da encenação.

A dupla ou tripla codificação inscreve as cenas de «Hamlets» quer na história das encenações da peça, quer em géneros, formas e tecnologias específicas. Os sistemas de signos activados provêm de múltiplos géneros teatrais, cinematográficos, musicais, etc. e também da tecnocultura contemporânea: o confronto entre Hamlet e a mãe, Gertrudes, é dramatizado como conflito de gerações telenovelesco; o diálogo entre Ofélia e Hamlet, observado por Cláudio e Polónio, é reescrito como escuta electrónica, à maneira do filme de espionagem; o poema de amor, de Hamlet para Ofélia, é revelado por Polónio ao Rei Cláudio e à Rainha Gertrudes como mensagem de SMS; a cena dos coveiros ecoa um cruzamento entre Gil Vicente e Shakespeare, com elíptica alusão a Beckett no singular cipreste que as personagens arrastam; o diálogo sobre Yorick e as caveiras é encenado como teatro de marionetas, materializando na condição do próprio signo teatral a vida emprestada que a significação constitui; o funeral de Ofélia é encenado como ritual de cultura popular portuguesa; o duelo entre Laertes e Hamlet como competição virtual de esgrima; a angústia existencial do protagonista como vídeoclip rock; o afogamento de Ofélia e o lamento de Hamlet como performance corporal; etc., etc. Aponto apenas mais um exemplo, entre outros possíveis: a representação teatral diante do Rei Cláudio. A evocação do envenenamento do Rei Hamlet na peça dentro da peça - que permite ao Príncipe Hamlet confirmar as suspeitas - é simulada, com a ajuda da iluminação estroboscópica, de acordo com os efeitos cinéticos e com as convenções dramáticas do cinema mudo. A expressividade espectral dos gestos e dos rostos, a gestualidade enfática e formulaica, a explicitação redundante da morte e do amor, a caracterização das personagens na fisionomia e nos figurinos, tudo isto tipifica a recodificação paródica característica desta encenação.

Ofélia (Ana Beirão), «Hamlets», TEUC, encenação de Nicolau Antunes: estreia-TAGV, 8 Dezembro 2006. Foto © TEUC

Hamlet (Nuno Geraldo), «Hamlets», TEUC, encenação de Nicolau Antunes: estreia-TAGV, 8 Dezembro 2006. Foto © TEUC

Desde o minimalismo da cena inicial, em que as sentinelas e Horácio, de laterna na mão, comentam a aparição do fantasma do Rei Hamlet, até às mortes em cadeia que consumam o destino trágico desencadeado pelo ciclo incontrolável da vingança familiar, a sintaxe cénica procede por transcodificação sucessiva, reinscrevendo cada um dos quadros em géneros dramáticos, fílmicos, televisivos e musicais particulares. Apesar de opções por vezes redundantes e explícitas demais - como acontece em alguns dos momentos de articulação entre acção dramática e música de fundo, ou no histrionismo excessivo de certos gestos, ou nos anacronismos demasiado sublinhados -, esta acumulação de quadros, encenados de modo aparentemente desconexo, põe a nu a encenação como prática de leitura e de construção de sentido. E como, nessa prática, os códigos dos géneros, teatrais e não-teatrais, interagem na produção de um objecto semioticamente saturado. Mais do que mero exercício de actores e encenador, consciente da sua natureza de exercício, «Hamlets» constitui também um dos exercícios mais estimulantes que neste ano de 2006 foram propostos aos espectadores do TAGV.
MP

01 dezembro 2006

1 x 16

[Máquina-TAGV]

Da esquerda para a direita: Pedro Nunes, Ana Carolina Morais, Marisa Borges, João Esteves, António Frazão, Hélder Medeiros, Gisela Oliveira, Maria Quinteiro, Catarina Carneiro, Pedro Ramos, Nuno Teixeira, Ana Teixeira, Tiago Duarte Correia, Ana Fonseca, Filipe Monteiro e Paulo David Carvalho - Frente de Casa, TAGV: foto de Pedro Dias da Silva (28-11-2006).

Escrever a partir de uma fotografia é sempre um dilema: passar, através dela, para o referente do qual a foto se constitui como mero signo (e seria essa a dimensão documental da série «Máquina-TAGV»), ou, pelo contrário, parar na própria superfície da foto e tratá-la como referente de si mesma? Vista assim, isto é, como campo de pixéis que a luz activou, torna-se difícil não ficar preso da inesperada beleza da composição. De onde vem a beleza deste retrato? Da uniformidade das cores nas roupas? Da geometria das figuras no espaço? Da relação entre sorrisos e olhares? Da consciência dos retratados de estarem a ser fotografados? Da etiqueta que, no lado do coração, nomeia cada uma das figuras? Quem vem ao Teatro, conhece-os/as. Se não pelo nome, pelo menos pelo rosto, que é outra espécie de logótipo. A sua presença discreta e, ao mesmo tempo, visível faz parte do processo de produção do espectáculo como ritual e como prática social. São eles a extensão humana da sala que permite ao edifício estender os braços e acolher o público. De certo modo, permitem ao TAGV encarnar melhor no papel de anfitrião. Vê-los todos juntos, registados desta forma, é também ver melhor cada um deles.
MP

Dezembro 2006

[Arquivo-TAGV]


O TAGV tem procurado fazer do Café-Teatro um espaço público de comunicação sobre práticas sociais, científicas e artísticas contemporâneas. Através de lançamentos, leituras e conversas, também a literatura tem tido aí um lugar permanente. Em Dezembro chega ao fim o ciclo «escrileituras», que decorreu ao longo de 2006. Refira-se ainda o recital «Matéria de Poesia», pel’A Escola da Noite, com poemas de Adélia Prado, Carlos de Oliveira, Manoel de Barros e Alexandre O’Neill. O compositor Wim Mertens apresenta-se a solo pela primeira vez no TAGV. O cinema traz-nos obras de Paul Haggis, Eric Rohmer, Fernando Meirelles, Yoji Yamada e Wang Xiaoshuai. De entre as noites de cinema, destaque-se o filme Paradise Now, de Hany Abu-Assad, dedicado ao uso do suicídio como prática de guerra. O Coro Misto da Universidade de Coimbra assinala o quinquagésimo aniversário. O TEUC estreia a sua última produção, uma encenação de Nicolau Antunes, a partir de Hamlet. Prossegue o ciclo de concertos didácticos «Intervalo TAGV», em co-organização com o Conservatório de Música de Coimbra. O programa de Dezembro inclui ainda as exposições «Cortina de Fumo» de João dos Santos e «Fernando Lopes-Graça 1906-2006».
MP