Tinta-da-china animada (28 Abril 2007)






Planos do filme «Stuart», de Zepe (José Pedro Cavalheiro), 2006, Som e Música - Paulo Curado, Montagem - Nuno Amorim, Prémio Melhor Animação, XIV Caminhos do Cinema Português, TAGV, 21-28 Abr 2007.
«Stuart» inspira-se na figura e na obra do desenhador modernista Stuart de Carvalhais. Aludindo à técnica de desenho a tinta-da-china e, amiúde, citando figuras e ambientes adaptados de vinhetas e pranchas de Stuart de Carvalhais, o filme de Zepe mostra-nos a banda desenhada enquanto storyboard para cinema. O potencial narrativo decorrente da sugestão de temporalidade entre cada vinheta é aqui transposto para a animação dos desenhos que se vão metamorfoseando e reconfigurando sobre a página e sobre a tela. Esta duplicação do desenho em imagem cinematográfica constitui um dos eixos formais da obra de Zepe. A materialidade gráfica desdobra-se em materialidade cinética, jogando com os efeitos ópticos que produzem, para o olho humano, o conjunto de ilusões de movimento que designamos como cinema.
A alternância entre branco e preto, que obriga o olhar a dividir as formas entre fundo e figura; a alternância entre as duas e as três dimensões, resultante do processamento das coordenadas que definem a distância relativa dos planos; a projecção da sombra na luz e da luz na sombra, que faz oscilar a percepção do interior e do exterior; os ângulos e movimentos de câmara, que induzem movimento na perspectiva do observador, projectando a passagem do tempo sobre a janela da imagem; os raccords de cena para cena, que se articulam muitas vezes com a transição da bidimensionalidade do plano para a tridimensionalidade do espaço; e, acima de tudo, a transformação dos pontos em linhas, das linhas em superfícies e das superfícies em volumes - todos estes elementos são mostrados na sua dimensão elementar, como traços e manchas de tinta, cuja combinação e recombinação resulta no dispositivo percepcional e narrativo que coloca a imagem em movimento.
Mas para que esse movimento possa animar as imagens é ainda necessária a sintaxe de sons e de música que confere densidade referencial e emocional aos signos. A articulação dos desenhos com o som é, de facto, essencial para a criação da disposição imaginária capaz de fazer o espectador entrar no espaço narrativo e emocional próprio da imagem animada. A banda sonora de Paulo Curado é, a esse título, exemplar na articulação com a dança do negro sobre o branco. «Stuart» consegue, de certo modo, animar o interior do desenho, isto é, animar a gestualidade que torna possível ao desenho tomar forma sobre a página ou sobre o écran. Aquilo que vemos, enquanto espectadores, é esse movimento interior das imagens: o movimento que lhes permite ganhar uma forma e o movimento que lhes permite transformar-se noutras formas. O percurso que é feito pela sombra de Carvalhais naquilo que imaginamos como signos da cidade de Lisboa na década de 1930 (nos cais do porto, nas ruas dos bairros populares, em bares e cafés, nos carros eléctricos, etc.) não tem a lógica narrativa de uma estória. Tem antes a lógica do grafismo em movimento. Mesmo a apropriação dos desenhos de Stuart de Carvalhais é feita com esse pressuposto de animar o gesto caligráfico do pincel e da caneta.
MP