[Máquina-TAGV]
O que aquela peça não esperava era que a sua descrição, ao tomar a forma de autodescrição, lhe parecesse mais impossível do que as restantes. Era como se o ver-se por dentro, dentro da engrenagem e dentro da peça que era, tornasse ainda menos clara a imagem da sua morfologia e da função. A observação das outras formas de trabalho que compunham o todo do mecanismo revelara-se, em retrospectiva, mais facilmente alcançável. Talvez por lhe ser dada a liberdade de definir a forma da sua própria função, isto é, por poder dar forma à peça que era, e tentar, com isso, dar forma à máquina de que era peça, se tornasse improvável conseguir uma autodescrição que desse conta da sua forma específica de trabalho, quer dizer, da sua forma de ser peça da máquina. Uma autodescrição que a tornasse inteligível não só para outrem, mas para si mesma.

Embora escrito previamente pelo conjunto de práticas necessárias às organizações e pelas leis e regulamentos que atribuem funções e competências, é sempre possível redefinir e reescrever o papel, e, até certo ponto, só até certo ponto, mudá-lo. Mudá-lo no acto de o desempenhar. E chegar quase a compreendê-lo, quase, no acto de o mudar. Conhecer e imaginar - à medida que se conhece o que parece ser - o que pode ser, e dar à forma da sua função algo disso que se imagina. Sabe que a sua função de peça, o seu papel, tal como tenta realizá-lo, é, deve ser, tem de ser, só pode ser, tornar a instituição o mais pública possível. Pareceria certamente exagerada a enumeração de todas as tarefas realizadas com esse objectivo, tão exagerada que é a própria peça quem tem dificuldade em acreditar que tudo isso pudesse ter acontecido. E que resultou dessa espécie de paixão, ou de sofrimento, de quem deu por si, meses a fio, a trabalhar acima dos seus recursos e das suas forças.
Fotos MP (26 Set 2007)
E é precisamente isso que a impede de se autodescrever. Não é apenas por tentar pensar o conjunto da máquina, em todas as suas componentes - na organização, na comunicação, na programação. Ou por perceber que há muito conhecimento a recolher em todos os cantos – na teia e na plateia, no palco e no subpalco, na frente da casa e nos bastidores – e a retransmitir para todos os pontos para que a máquina se veja como tal e funcione como tal. É porque, neste processo, a peça descobre, com surpresa, o entusiasmo com que se entrega ao papel que tenta redefinir. E esse entusiasmo, e a ambição que o acompanha, não lhe permitem ver claro. Fazem-na confundir o que faz com o que deseja fazer, o que é com o que imagina que podia ser. Por isso a sua função lhe escapa quando, como faz agora, tenta descrevê-la autodescrevendo-se.
MP