28 fevereiro 2007

Chirgilchin no TAGV (26 Fevereiro 2007)

[Arquivo-TAGV]





Chirgilchin, TAGV, 26-2-2007: fotos de Mário Henriques.

25 fevereiro 2007

Paradise Now (24 Fevereiro 2007)

[Crítica-TAGV]

Paradise Now (2006). Realização de Hany Abu-Assad. Argumento de Hany Abu-Assad, Bero Beyer e Pierre Hodgson.

Seria difícil imaginar um filme mais consciente da dificuldade em representar narrativa e politicamente o seu objecto: a utilização do suicídio como arma militar da resistência palestiniana à ocupação israelita, contada através da estória de duas personagens (Said e Khaled) que são chamadas a levar a cabo uma missão. Sem perder nunca a verosimilhança (na figuração do contexto familiar, laboral e militar), consegue ao mesmo tempo representar através dos dilemas concretos em que coloca as personagens o espectro das posições políticas relativas à legitimidade do acto do bombista suicida. Consegue portanto fazer aquilo que é mais difícil de conseguir em qualquer obra de ficção de tema político: ligar a escala da acção individual e a escala da história colectiva, fazendo-as aparecer uma na outra.

Isto é particularmente saliente no modo como os discursos de legitimação (políticos, teológicos, militares) são encenados através dos actos e situações concretas das personagens. Digamos que a ideologia se vê obrigada a confrontar as suas limitações explicativas ao ter de encarnar num conflito dramático. Ao evitar qualquer crença a priori numa determinada resolução dos dilemas que encena, Paradise Now evita também uma retórica panfletária de legitimação ou de não-legitimação daquela forma particular de luta de resistência. A sua forma anti-espectacular e anti-climática de desenvolvimento é quase anti-fílmica no modo como recusa as convenções do filme político e do filme de guerra. Trata-se de imaginar uma situação individual e familiar concreta e mostrar como é que pode acontecer.

A ideia parece simples, mas foi desenvolvida de forma extraordinariamente eficaz: imaginar a preparação de um atentado que não se chega a consumar e que coloca os protagonistas na situação de terem de ultrapassar os mesmos dilemas pela segunda vez. Esta espécie de segundo destino (de uma segunda vida e de uma segunda morte) tem uma antecipação na necessidade de repetição da gravação do vídeo de despedida do mártir e, simultaneamente, chama a atenção para as possibilidades narrativas, isto é, para as possibilidades de se contar uma estória de outras maneiras. Mais importante ainda do que tudo isso: este segundo destino ou destino alternativo levanta a possibilidade de se fazer a história, e portanto a política, de outra maneira. Paradise Now oferece uma representação da complexidade política e existencial do uso do suicídio como arma de guerra no contexto do conflito israelo-palestiniano.

Os vídeos de despedida constituem um dos instrumentos de propaganda usados pelos chefes militares do Hamas para glorificarem o martírio suicida. O guerrilheiro suicida é geralmente enquadrado com o estandarte da organização em fundo, uma kalashnikov e o Corão, enquanto lê o seu texto de despedida. Ao encenar a gravação, Hany Abu-Assad revela o abismo que se abre entre o discurso político e teológico oficial de legitimação do suicídio, no seu vazio abstracto, e o acto individual, na sua absoluta concretude existencial. A despedida da família (outro dos elementos convencionais nos vídeos de despedida) mostra também a insuficiência da linguagem, e da linguagem do mártir, para transpor o abismo que se abre entre o acto de amor individual e a racionalidade militar que o leva a dispor da sua própria vida para matar os outros.

Paradise Now representa bem a ordem militar da organização da resistência, em especial a divisão entre os que planeiam e os que executam, mostrando-a como correlato da divisão entre o discurso oficial de legitimação e a concretude irreversível, solitária e absoluta do acto. No modo como nos mostra a decisão final de Said de levar a cabo o atentado, Paradise Now aumenta a complexidade dramática e moral do seu argumento: a justificação pode ser política e existencialmente legítima e o bombista suicida pode estar a agir com o máximo de coragem e com o máximo de integridade ao assumir a responsabilidade plena pelo seu acto. Quer dizer que, mesmo duvidando da doutrinação levada a cabo pela resistência clandestina relativamente à necessidade política do acto, é preciso conhecer as condições concretas que produzem o bombista suicida como arma de guerra.


Em A Minha Vida é Uma Arma: Uma História Moderna dos Bombistas Suicidas (edição portuguesa, 2005), o jornalista alemão Christoph Reuter conta um pouco da história recente de Estados e grupos militarizados em cujas práticas a combinação de mitologia islâmica, repressão militar e propaganda política produziu uma das formas mais perversas de martírio: o guerrilheiro disposto a explodir em nome de Deus. Ainda que o martírio seja uma das formas clássicas de manipulação do indivíduo, desde sempre essencial para alimentar os exércitos, a particularidade do guerreiro suicida está no facto de este infringir a interdição de atentar contra a sua própria vida, justificando o acto de decidir o instante da sua morte como realização de um desígnio divino. De certo modo, transformar o corpo em arma de guerra é levar às últimas consequências a lógica da própria máquina de guerra e da desumanização do indivíduo que ela pressupõe. Se o suicida que explode é a arma dos impotentes que torna os poderosos impotentes, a guerra não pode ser a resposta certa.

A concluir o filme com um grande plano do rosto e do olhar de cada uma das personagens, sugerindo o modo como cada uma delas pensa no acto que está prestes a consumar-se, Paradise Now sublinha os diferentes modos de relação existencial e política com o acto do suicida. Este mutismo final parece figurar, ao mesmo tempo, a irredutibilidade dos pontos de vista situados de cada indivíduo (a mãe, o amigo, a amiga, o chefe militar, etc.) e a irreversibilidade da decisão consciente com que o indivíduo decide morrer matando.

“[Pai] Foste tu que me ensinaste a ser um homem em todas as situações. Foste tu que criaste um leão nesta casa, que ensinaste os inimigos de Deus e dos Muçulmanos a temer. Perdoa-me, querido pai, se as notícias do meu martírio te surpreenderem, pois sei que estavas à espera que eu acabasse os estudos um destes dias — mas isto é o que eu tenho de fazer na situação presente. E nós voltaremos a ver-nos noutra vida.” (Carta de Ismail Masawabi — que se fez explodir a 22 de Junho de 2001, no colonato israelita Khan Yunis — dirigida à família). [citado no livro de Reuter, trad. MP a partir da versão em inglês]
MP

23 fevereiro 2007

Vítor Joaquim + Isan no TAGV [Ciclo Senses. 22 Fev 2007]

[Arquivo-TAGV]


Vítor Joaquim e Laetitia. Ciclo Senses. TAGV 22.02.07.
Fotos: Mário Henriques.

Um planeta de sons [“Flow”] que se de diluíam num turbilhão de fragmentos visuais. Ele manipulava o som, intenso, hipnótico. Ela decompunha-o em imagens. Abstractas, animadas, de intensidade cromática, quase com vida. Espécie de pulsar cardíaco cortado por arritmias, movido por uma poesia tecnológica instrumental, excepcionalmente contaminada por confissões e declarações vocais. Texturas estranhas e ambientes ásperos que nunca deixaram de ser confortáveis. Música para os olhos.



Isan. Ciclo Senses. TAGV 22.02.07.
Fotos: Mário Henriques.

É na conjugação da sensibilidade pop do quotidiano com a tecnologia e na produção de canções e momentos que requerem concentração íntima e uma relação frágil com o fascínio, que reside o apelo dos Isan. Isso mesmo confirmaram Anthony Ryan e Robin Saville durante a sua actuação no TAGV, repleta de ritmos minimalistas, pop borbulhante, harmonias melancólicas, com uma atmosfera acolhedora, ao mesmo tempo nostálgica – do embalo e lirismo da música dos anos 80 – e radiosa. Em última análise, irresistíveis novelos de electrónica pastoral.
PDS

Cibelle no TAGV [21 Fev 2007]

[Arquivo-TAGV]




Cibelle. TAGV 21.02.07. Fotos: Mário Henriques.

Coimbra vibra de novo com blues

[Recorte-TAGV]


Design de Joana Monteiro/FBA.

Entre os dias 15 e 17 de Março, o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) acolhe a 5.ª edição do Festival Coimbra em Blues. A cidade do Mondego volta a abrir-se às sonoridades dos blues, este ano com uma programação que deixa de fora a linha mais tradicional, em favor da divulgação de correntes mais contemporâneas.

E mais uma vez, o festival só é possível graças ao apoio financeiro da Delegação Regional da Cultura do Centro, que contribui com uma ajuda de 70 mil euros [correcção: 30 mil euros]. O delegado regional, António Pedro Pita, considera mesmo que "Coimbra em Blues é um dos pontos luminosos da programação anual do TAGV. Mas é mais do que isso é uma importante afirmação de Coimbra como centro de cultura contemporânea e como cidade cosmopolita".

Criado em 2003, ano em que a cidade foi Capital Nacional da Cultura, o evento tem resistido e evoluído, cativando público, com programações de qualidade.

A presente edição vai mesmo sair de Coimbra, com Son of Dave e Black Diamond Heavies a actuarem também no Teatro Municipal da Guarda, a 16 e 17 de Março, respectivamente. Esta "extensão" à Guarda resulta de um protocolo de colaboração estabelecido entre os dois teatros.

O festival abre no TAGV, dia 16 de Março, com o grupo suíço Hell's Kitchen Blues Band e o "one man band" canadiano Son of Dave. No dia seguinte, actua o duo Black Diamond Heavies, originário do Tennessee, e Bob Log, um "homem-orquestra" do Arizona. O festival encerra com as presenças de Scott H. Biram e da banda Alabama 3. Scott é originário do Texas e pratica um blues pouco ortodoxo, com paisagens sonoras próximas do country, mas também do punk e mesmo do heavy metal. Para os Alabama é um regresso a Portugal, depois de terem tocado no Festival de Vilar de Mouros de 2005. Com as vozes de Robert Love e Dvelin Love, os "riffs" da guitarra de Rock Freebase e a harmónica de Harpo Stangelove prometem um concerto electrizante a fechar o pano sobre o festival, que inclui ainda um ciclo de cinema.

Américo Sarmento, Jornal de Notícias, 23-02-2007.

22 fevereiro 2007

Coimbra em Blues com a edição "mais ousada"

[Recorte-TAGV]

Design de Joana Monteiro/FBA.

Paulo Furtado, director artístico, afirma que o cartaz da quinta edição do Festival Internacional de Blues de Coimbra, de 15 a 17 de Março, será o "mais ousado" de sempre. A prova são os nomes que passarão pelo palco do Teatro Académico de Gil Vicente: Hell's Kitchen Blues Band e Son of Dave, Bob Log III e Black Diamond Heavies, mais Scott H. Biram e Alabama 3. O Coimbra em Blues, organização da Delegação Regional da Cultura do Centro e do Gil Vicente, acolhe ainda uma mostra de filmes temáticos e uma exposição retrospectiva da edição anterior, com fotografias de Nuno Patinho e Pedro Medeiros.

Se, em anos anteriores, a organização optou por uma fórmula mágica que lhe valeu bilheteiras esgotadas - combinar as formas tradicionais da canção negra norte-americana, de origem rural ou urbana, com as formas contemporâneas do blues -, este ano o músico conimbricense Paulo Furtado arrisca mais. "Quisemos comemorar a quinta edição com um programa que é uma fotografia do que se está a passar de diferente neste momento na transformação do blues", explica o mentor dos Wray Gunn e Legendary Tiger Man.

Apesar de não haver "nada" no festival com o "formato mais tradicional" do blues, Furtado está confiante nos nomes que escolheu e acredita que as noites de sexta (com Bob Log III) e de sábado (com Alabama 3) vão voltar a encher a plateia do Gil Vicente, à semelhança de anos anteriores. Paulo Furtado sublinha ainda que, à excepção dos Alabama 3, responsáveis pelo tema da banda-sonora da série Os Sopranos, todos os restantes músicos se vão estrear em solo português. Pelo Coimbra em Blues já passaram nomes como Paul Jones, Reverend Vince Andersen, Sheila Wilcoxon, Adolphus Bell e Kenny Brown. A autarquia deixou de financiar o festival há dois anos.

Maria João Lopes, Público, 22-02-2007

18 fevereiro 2007

Partilha de cena

[Notícia-TAGV]

Uma nova publicação de teatro em Coimbra: Partilha de Cena, nº zero (Dezembro de 2006).

Saiu em Dezembro de 2006 o número zero de uma nova publicação semestral, publicada em Coimbra pela MAFIA-Associação Cultural de Coimbra, de que fazem parte os colectivos de teatro Camaleão, Marionet e Projecto BUH!. Intitulada «Partilha de Cena», a publicação é dirigida por José Geraldo e Mário Montenegro. Este primeiro número é dedicado ao tema «Teatro e Ciência» e tem o apoio da Delegação Regional da Cultura do Centro. Contém, em volumes separados, os textos integrais de três peças apresentadas em Coimbra: «Revolução dos Corpos Celestes», de Mário Montenegro (representada pela Marionet em 2001), «Flatland», adaptação de José Geraldo a partir do romance homónimo de Edwin A. Abbott (representada pela Camaleão em 2003), e «Câmara Escura», de Ricardo Seiça (instalação performativa realizada pelo Projecto BUH! em 2003). Este número inclui ainda textos de Carlos Fiolhais e de Carl Djerassi sobre a figuração da ciência no teatro.

A criação de peças de teatro de temática científica tem conquistado o interesse de vários grupos de teatro de Coimbra nos últimos anos. Desse trabalho, feito por vezes em colaboração com instituições universitárias, resultou um conjunto de espectáculos que explora de forma lúdica e didáctica o potencial dramático associado a determinadas leis científicas ou a figuras da história da ciência. Pela consistência cénica e dramática, refira-se em particular o trabalho de Mário Montenegro. Desde Setembro de 2005, o Teatro Académico de Gil Vicente acolheu também algumas destas criações de teatro de tema científico: «60 minutos com Brecht» (de 20 a 24 de Setembro de 2005), em encenação de Clovis Levi; «LED – viagem ao interior num computador», com texto e encenação de Mário Montenegro, pela Marionet (a 25 e 26 de Setembro de 2006); «Physicomic», com encenação de David Cruz, pela Encerrado para Obras (a 30 de Outubro de 2006); e «Bengala dos Cegos: O Descobrimento de Pedro Nunes», com texto e encenação de Mário Montenegro, pela Marionet (a 18, 20 e 21 de Novembro de 2006).

A nova publicação contém, no seu título feliz, um princípio que o TAGV tem tentado pôr em prática no apoio à produção local, entendendo que essa é uma das funções do acto de programar. Além de constituir uma descrição da partilha de cena que tem ocorrido no espaço partilhado pela MAFIA (e da partilha com o público que esta publicação agora pressupõe), a expressão «partilha de cena» permite ainda, para quem tiver alguma capacidade de leitura, imaginar uma política cultural para o teatro em Coimbra. Uma política que deveria passar pelo apoio sustentado aos grupos de teatro, pela construção de salas e aquisição de equipamentos que pudessem ser partilhados, pelo estabelecimento de um programa educativo permanente para o teatro, capaz de integrar a actividade criativa local nas actividades escolares de todos os níveis de ensino, e pela publicação e divulgação da criação dramatúrgica local. Esta nova publicação, por si só, mostra-nos aquilo que é preciso continuar a fazer: apoiar mais, criar mais, conhecer mais, partilhar mais.
MP

16 fevereiro 2007

A presença da ausência do autor tem um som (15 Fevereiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

«Itinerário do Sal», de Miguel Azguime, é um exemplo da hibridez intermédia tornada possível pela actual tecnologia digital. Ao permitir aproximar as materialidades do som e da imagem, nas suas múltiplas formas (incluindo a combinação de registos pré-gravados e a captação e manipulação ao vivo em tempo real), com a acção performativa do corpo do actor, esta obra encena o fenómeno da textualidade como objecto sensorial e semiótico. Por outras palavras: aquilo que Miguel Azguime explora é a possibilidade de coincidência entre a notação e o conteúdo da notação.

Os sons ligeiramente diferidos que saem da boca do actor/autor tentam ser simultaneamente o resultado dos movimentos corporais, isto é, aquilo que poderíamos referir como a música da voz ou a poesia da voz, e a notação desses movimentos. É como se o som escrevesse o próprio som. O mesmo se poderia dizer da escrita: os traços traçam a sua própria possibilidade enquanto forma escrita. Som e traço são notações em segundo grau: o ser que designam é o ser que eles próprios são. O acto simbólico é oferecido como experiência semiótica na qual os signos devem ser sentidos e não interpretados. É este neodadaísmo fonético e visual que produz o paradoxo da obra: os signos tornam-se a própria música e o corpo mais um objecto sígnico desencarnado. Os significantes estão assim encerrados nessa condição diferencial de serem apenas aquilo que os distingue uns dos outros.

Deste modo se expõe a condição textual da comunicação em todas as suas formas: como textualidade da imagem e da imagem ao vivo, como textualidade das escritas e das línguas, como textualidade do som e da voz, como textualidade da luz, como textualidade do próprio corpo. A relação com o computador serve assim para agudizar a experiência da condição humana como condição textual. Através do efeito multiplicador das mediações e da saturação sensorial que elas implicam, a máquina serve para textualizar o sentido nos sensores, nos efeitos sonoros e nas projecções. A digitalização que afecta a própria linguagem manifesta-se na lógica combinatória que regula as estruturas frásicas e na paronímia que determina as variações nas palavras.

Miguel Azguime, Itinerário do Sal, TAGV, 15-02-2007. Fotos © Pedro Ferreira / Perseu Mandillo.

Na medida em que o sujeito/autor se auto-representa e se constitui da mesma maneira, são a própria consciência e a memória que se oferecem como objectos textualizáveis. A loucura da criação seria esse som ou texto interior, isto é, a própria possibilidade de sentido, como outra forma de textualidade. A quadrifonia contígua das línguas (português, francês, inglês e alemão), a reverberação multitímbrica da voz (nos registos e nos ecos), a sobreposição e justaposição das escritas, a duplicação do corpo e dos gestos: todos estes movimentos cénicos constituem uma notação da loucura e da criação como acontecimentos sígnicos que ocorrem no interior da linguagem e das linguagens (poéticas, musicais, etc.). Entendida assim, «ópera multimédia» não seria apenas a designação do género híbrido desta obra, mas antes uma metáfora digital da criação (e da existência) humana como processo significante.
MP

A escrita como deambulação (15 Fevereiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Se Rui Zink nos deu o monólogo do escritor agastado pela possibilidade de ter perdido a obra que não chegou a escrever, Manuel da Silva Ramos ofereceu-nos o monólogo do escritor perseguido pelo ruído dos vizinhos que não lhe permitia acabar as obras. É essa a estória contada pelo texto autobiográfico «O silêncio de Monsieur Ramos» (2004), cujo narrador nos fala das inúmeras mudanças de casa originadas por essa busca infrutífera do silêncio. Foi com a leitura deste texto que Manuel da Silva Ramos encerrou a primeira parte da reflexão sobre o seu processo de escrita, na segunda sessão do ciclo «máquinas de escrever». Já tinha entretanto referido a influência do surrealismo francês, em especial de Raymond Roussel, no seu modo de escrita.

Já tinha referido também o modo como as frases ou estórias ouvidas por acaso desencadeavam por vezes o processo de construção de uma narrativa, que nascia ou desembocava naquele fragmento acidental. Deu como exemplo a frase ouvida à saída do supermercado naquela manhã: «a velha hoje já levou dez», um ponto de partida, disse-nos, suficiente para um romance, não fora o ter de vir a Coimbra nesse dia... O constrangimento criado por uma situação, como a estória da rapariga criada pela mãe num galinheiro (que incorporou no romance Ambulância, de 2006), funciona portanto como motor da lógica narrativa. Esta lógica pode ainda ser deliberadamente aleatória, como acontece em passos d’ Os Lusíadas (1977), construídos a partir de consultas ao dicionário feitas ao acaso. Outra restrição curiosa é a que impõe a si mesmo quando investiga histórias para partir delas para uma estória: a procura deve ser limitada ao suficiente para abrir caminho à imaginação.

Manuel da Silva Ramos no TAGV: fotos de Mário Henriques (15-02-2007).

Particularmente propício à sua imaginação parece ser o acto de caminhar: o seu primeiro texto, Os Três Seios de Novélia (1969), teria sido escrito mentalmente em andamento. Esta ligação entre andar e escrever continuou até hoje, num escritor que se caracteriza como peripatético e como escritor da rua. A atenção ao acaso, a combinação frásica inesperada, o desenvolvimento de situações a partir de restrições e a sua atenção à linguagem falada são algumas das características do processo criativo que se reflectem no resultado. Uma das características das suas obras, uma certa hibridez que põe em causa fronteiras estabilizadas de géneros, resulta também desse processo deambulatório de composição.

«Pela primeira vez vi que os tectos que não eram falsos se abaulavam, rangiam e perturbavam o avanço da minha escrita.
Imediatamente tomei providências. Fui falar com os vizinhos que habitavam por cima de mim, um casal de estudantes e um amigo, e intimei-os para que fizessem atenção quando andassem e que o melhor era usarem pantufas.
O efeito desta minha intervenção foi nulo. Emperravam os capítulos do meu livro, exasperavam-me com os ruídos da madeira que em certos sítios pareciam as sete trombetas do Apocalipse. Em certos dias ficava horas parado à espera de ver surgir uma perna ou pé fulgurante na brancura imaculada do tecto.
Resolvi ser feroz com o estudante que passava mais tempo em casa e um dia encurralei-o na escada de cimento do prédio.
Foi o pior que lhe podia fazer. No dia seguinte ele andava ferozmente em cima de mim de um lado para o outro do apartamento. Fazia de propósito.
Não podia escrever. Não tinha forças, nem imaginação.»

Excerto de «O silêncio de Monsieur Ramos» (2004), de Manuel da Silva Ramos, lido pelo autor no TAGV a 15 de Fevereiro de 2007.
MP

09 fevereiro 2007

Teatro de Papel (06 Fevereiro 2007)

[Arquivo TAGV]

Teatro de Papel. TAGV. 06.02.2007. Foto: Hugo Fernandes.

Personagens do Teatro de Papel/Convidado de Pedra.
TAGV. 06.02.07. Foto: Hugo Fernandes.

Personagens do Teatro de Papel/Convidado de Pedra.
TAGV. 06.02.07. Foto: Hugo Fernandes.

Personagens do Teatro de Papel/Convidado de Pedra.
TAGV. 06.02.07. Foto: Hugo Fernandes.

«Para o espectador que ainda não conhece o nosso Teatro Nacional de Papel, há que dizer que ele é a ilusão das ilusões cénicas: uma miniatura que reproduz as matérias de que é feito o próprio teatro; uma estrutura teatral autónoma, portátil. Uma lanterna mágica, de viagens, memórias e sonhos. A sua estrutura recria o belo edifício do Teatro Nacional São João, em ponto pequeno, concebendo o seu palco, os cenários, actores e demais elementos cénicos em desenhos coloridos e recortados em papel. Ilustrações coladas em placas de cartão e plástico, que depois são montadas num todo, como se de uma maqueta se tratasse».
Marcelo Lafontana

06 fevereiro 2007

Elogio ao 1/2 (5 Fevereiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Elogio ao 1/2 (2005), de Pedro Sena Nunes: ciclo Doc TAGV, 05-02-2007.

Na medida em que se propõe ser um registo de acontecimentos que são independentes do próprio registo, isto é, que decorrem como actos no mundo (quer dizer, actos que não são representação de actos a não ser quando são vistos como objectos captados pela câmara e apropriáveis na sua condição de imagem pelo espectador), o documentário estabelece com o real um conjunto de transacções específicas. Sem deixar de ser uma representação, ou seja, uma forma de conhecimento mediada, reivindica um valor de verdade referencial para o próprio acto de filmar. Testemunhar a sua própria presença enquanto câmara in loco e in vivo é uma das convenções do realismo cinematográfico documental. Daí a intersecção com certas técnicas formais da reportagem, como a recolha de depoimentos, mais ou menos informais, a tomada de imagens no local, a captação de som em directo, a simplificação da iluminação, etc. A crueza da luz, por exemplo, é um dos marcadores da recolha documental. Aquele valor de verdade é reescrito necessariamente pela linguagem especificamente fílmica (planos, movimentos de câmara, montagem, sonorização, etc.), que, de forma mais ou menos explícita, constrói um sentido narrativo, cuja natureza discursiva pode ser maior ou menor. Voz off, ante-títulos, banda sonora, sintaxe dos depoimentos, etc. produzem um dispositivo de interpretação das imagens que acompanham, eventualmente numa progressão temática e ideológica em direcção a um fecho narrativo.

O que se consegue mostrar? O que não se consegue mostrar? No que diz respeito à documentabilidade do seu objecto, o Bairro 25 de Abril da Meia-Praia, «Elogio ao meio» de Pedro Sena Nunes é exemplar na tentativa de o mostrar a partir da linguagem e das representações dos próprios habitantes do bairro. Na forma, quase casual, como os depoimentos se acumulam e se intercalam está contido o dilema de construir uma representação ajustada ao seu objecto. Que se torna claro também através dos múltiplos pontos de vista construídos sobre as casas, as ruas do bairro e a praia, filmados a partir de ângulos diferentes, a horas diferentes, em planos diferentes. Esta montagem perspectivista ajuda ao mesmo tempo a dar densidade às imagens e a sugerir a incompletude da representação. Com efeito, a acumulação de imagens e depoimentos funciona para o espectador como equivalente da natureza fragmentária de um conhecimento que se pudesse obter falando com as pessoas e visitando o local, tal como fez o realizador. Nisso está uma das qualidades da obra: a câmara e a montagem, enquanto narradoras, não sabem mais do que o espectador. Dão-lhe um conjunto de fragmentos cuja relativa autonomia não chega a ser ameaçada por uma coerência narrativa global. Quando se documenta o trabalho dos pescadores, por exemplo, não há qualquer dispositivo de explicação, a não ser as referências ocasionais que se encontram no discurso dos próprios pescadores.

Quando se trata de conhecer a realidade humana é a natureza económica da vida que se torna impossível não documentar, já que o trabalho é, num certo sentido, o principal modo de produção do real para os seres humanos. Documentar o real significa por isso documentar as práticas e formas de trabalho, os modos particulares de transformação da natureza que asseguram as condições de vida e determinam as relações entre os indivíduos. Por isso a pergunta «o que se consegue mostrar?» vem muitas vezes ligada a uma outra: «como se vive?». E esta é também uma das perguntas que o filme de Pedro Sena Nunes nunca deixa de fazer, e cuja resposta está contida na história da ocupação humana daquela praia e no trabalho das mulheres e dos homens que ali conquistaram um lugar habitável. As várias sequências sobre a linha do comboio, com enquadramentos obtidos de dentro do bairro e de fora do bairro, incluindo os que são dados a partir do comboio em andamento, ou até mesmo indirectamente a partir do depoimento da mãe cujo filho de sete anos morreu debaixo do comboio, resumem bem a tentativa de «Elogio ao meio» de se aproximar do seu objecto sem perder a consciência das limitações do seu meio. Dessa procura, que é simultaneamente uma procura da materialidade que permite à imagem aproximar-se da natureza, são signos o sopro do vento sobre as ervas nas dunas ou as centenas de peixes a saltar, prateados, no meio das redes na areia da praia.
MP

05 fevereiro 2007

The Straight Story (29 Janeiro 2007)

[Crítica-TAGV]

The Straight Story (1999), de David Lynch, TAGV (29-01-2007).

Da mágoa e do perdão.
Uma história simples.
Uma história simples, sem dúvida.
Mas uma história simples com uma grande História nas entrelinhas da vida de um homem.
Os dedos rugosos. As pernas cansadas. E os olhos brilhantes, cheios de segredos: da mágoa e do perdão.
O que realmente importa na vida, e parece que nos estamos sempre a esquecer, é aquilo que vamos deixando cair cada vez mais fundo nos bolsos das calças de ganga. E o caminho é cada vez mais fundo para lá chegarmos ou apertado. Ou apertado.
E as calças vão-se gastando mais e mais até romperem, cada vez mais cheias de segredos, de mágoa, e torna-se impossível deixá-las. Ou de procurar nos outros bolsos a réstia de vontade adormecida. Até à promessa de uma dor maior permanecemos na lassidão do conformismo. Na aceitação das coisas como se fôssemos apenas espectadores atentos da nossa própria vida, sem escolha.
Arrancar segredos. Pequenas fórmulas às linhas da vida. O esforço de a tentarmos tornar mais fácil é demoroso e/ou doloroso e muitas vezes complica-se mais. As coisas são o que são, o que decidimos fazer é a partir desse lugar com fórmulas ou sem fórmulas para nos salvar.
Sem deuses nem ermos.
A casa do perdão vai-se construindo sem janelas ou portas.

Da vontade.
Uma viagem envolvida na paciência: virtude cada vez mais esquecida e abandonada numa civilização conduzida pelo excesso de velocidade.
A paciência de um homem que conduz um cortador de relva, em paciência e dentro de uma paisagem desumanizada, num contacto mais profundo consigo mesmo. Apesar dos humanos com quem ele se relaciona ao longo da sua viagem, o calor paisagístico mantém-se como se um reflexo de si mesmo, ora em paz ora em desassossego.
Ora em paz ora em desassossego. Parece-me que esta fórmula todos nós conhecemos…
Uma viagem longa ou uma longa viagem à volta daquilo que fomos, que somos e como queremos acabar sem mudarmos os alicerces das nossas crenças.
A vontade de ser melhor e de fazer o que é realmente importante levou este homem a procurar bem no fundo nos bolsos as suas fórmulas secretas e a atravessar um estado americano na lentidão do cortador de relva: o que melhor temos a favor da nossa vontade?
Parece-me que a criatividade pode ser uma das respostas.
Straight Story, David Lynch. Ou uma história simples.
Ou uma história simples…
Da mágoa, do perdão e da vontade.

Anabela Gonçalves

Delicatessen (24 Janeiro 2007)

[Crítica-TAGV]

Delicatessen (1991), de Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro, TAGV (24-01-2007).

Aquilo que vemos: uma imagem recortada daquilo que pensamos serem prédios envoltos num permanente nevoeiro. É a imagem do que se tornou o mundo. Ou parte dele após o holocausto. Mas isso é só o reflexo do espelho do que se tornaram as pessoas: a luta pela sobrevivência que levou ao canibalismo, à extinção dos ratos e do dinheiro, aos homens-toupeira… Enfim, de regresso à caverna!
Aquilo que se faz: é conforme o grau de loucura…
Dentro do prédio degradado vivem os mais peculiares espécimes: cada um igual a uma patologia diferente desde complexos engenhos de suicídio, ao sexo como pagamento (expiação dos pecados?), a instrumentos que imitam o som das ovelhas, uma camisola que ora malha a desmalhar, os facalhões bem amolados que o osso humano é rijo… todos vivem na sua carência criativa e quem se diverte sempre são as crianças. Até ao fim.
E os palhaços e a música – sobreviventes salvadores sobreviventes.
E da derrocada se constrói a orquestra.

Anabela Gonçalves

04 fevereiro 2007

Thomas Brinkmann + Stolen Images Inc. ao vivo (TAGV. 03.02.07)

[Arquivo TAGV]

Thomas Brinkmann. TAGV 03.02.07. Foto: Mário Henriques.

Bem disposto e manifestamente bem-humorado, Thomas Brinkmann iniciou a sua actuação no TAGV de forma didáctica, explicando sumariamente as fontes sonoras que iria utilizar, assim como os métodos de construção musical. Computador e discos em vinil previamente preparados – cortados em quadrado e riscados de forma a produzirem os ruídos pretendidos – funcionaram como ingredientes de um repasto que, apesar da aparente pobreza de recursos, se revelaria lauto.

Mesa de mistura, gira-discos e discos em vinil manipulados durante a actuação.
TAGV 03.02.07. Foto: Mário Henriques.

Servindo-se das programações para criar ambientes e dos ruídos dos discos para marcar o ritmo, manipulou tudo a seu belo prazer através da mesa de mistura – que deveria ser encarada como uma espécie de prolongamento cerebral do artista, já que assumiu carácter fundamental no desenrolar da função. Grooves matemáticos ao serviço de uma música tecno de contornos minimais, cuja eficácia se comprovava na absoluta irredutibilidade rítmica, apresentavam código de barras sendo infecciosos e divertidos, activando o funcionamento das roldanas e ligações nervosas com que o nosso centro nevrálgico funcional dá ordem para dançar. Confirmava-se assim a competência artística do esteta e o carácter lúdico da sua música, complementada de forma interessante pelas imagens fortemente cromáticas e minimais (como que estimuladas pelos bleeps sonoros) trabalhadas em directo pelo videasta Stolen Images Inc..

Um dos discos em vinil utilizados por T. Brinkmann. TAGV 03.02.07. Foto: Mário Henriques

Nem mesmo os momentos de delírio rítmico, capazes de destruir os tímpanos mais resistentes e cujo prolongamento temporal os converteu em teste auditivo, se revelaram corpos estranhos. Porque os ouvidos se habituariam, entretanto, a tirar prazer desta música que espreme sem piedade as fontes sonoras, não será estranho que a totalidade da prestação se tenha afirmado como uma amálgama de convulsões de pop electrónica de um vírus infiltrado num sistema de inteligência artificial. Delírio analítico ou certeza melómana? Com toda a convicção, celebração do ruído: «depois de nos enredar no centro da alma, Brinkmann aprisiona-nos nas certezas da máquina».
PDS

01 fevereiro 2007

Fevereiro 2007

[Arquivo-TAGV]



Agenda mensal do TAGV, nova série, design Joana Monteiro/FBA.

Programar é, num certo sentido, estabelecer ligações. Ligações entre os objectos cénicos e a passagem do tempo. Ligações dos objectos cénicos entre si. Dessas ligações emergem padrões, produzidos a priori ou reconhecidos a posteriori. Padrões cronológicos, padrões temáticos, padrões genéricos. Um ciclo de programação é uma manifestação circadiana do desejo de organização do caos através da recorrência. O TAGV continua à procura dos padrões que lhe permitam encontrar o ritmo certo. O mês de Fevereiro constitui mais uma tentativa: o ciclo «Vintage» regressa com uma selecção de filmes de 2006; S.A. Marionetas, com «Tubic», e o Teatro de Papel, com «Convidado de Pedra», trazem-nos teatro de animação de figuras e objectos; no Café-Teatro, teremos a cenografia de Pedro Campos Costa. À programação «TAGV Digital» são dedicadas três noites: Thomas Brinkmann, Miguel Azguime e o projecto Isan, segunda sessão do ciclo «Senses». A «máquina de escrever» é, este mês, Manuel da Silva Ramos. E, além da cantora Cibelle, escutaremos ainda, em estreia absoluta em Coimbra, os cânticos vocálicos e hipnóticos dos Chirgilchin, de Tuva, o primeiro da série «TAGV Grandes Concertos». Há também ópera, com «La Traviata»,pela Ópera Estatal de Ekaterinburg, e dança, com os projectos Les Proserpines e Alter.Artes.
MP