[Arquivo-TAGV]
«Situação:
Uma casal de camponeses com um filho adulto, deficiente mental, prepara-se para abandonar uma aldeia do interior. São os últimos residentes. Vêem-se obrigados a sair porque a aldeia vai ser arrasada e no seu lugar irá surgir um grande eucaliptal atravessado por uma auto-estrada. O Pai está à porta do casebre e grita para a mulher e para o filho, que se encontram lá dentro.
Pai - Despachem-se. Não quero ficar nesta terra nem mais um segundo!
Mãe - Vai andando, só falta pendurar os panos.
Filho - Andando, andando...se quiser...andando...
Pai - Já não faço aqui nada, nem sirvo para nada. Porque não deitas as panelas para o poço? Seria mais lógico. Haveriam de ficar enterradas até que a água secasse e viesse um outro mundo e as descobrisse. Olha, mete um anel lá dentro ou uma chapa com o nosso nome. Alguém haveria de dizer que aqui viveu Josué Formiga Canelas e a sua família. Bem, vou-me embora sozinho. Vendo bem, para que vos quero agora, que já nada nos pertence?
Mãe - (Espreita) Pensas que não te estou a ouvir. (Mostra uma bolsa de dinheiro) E isto não é nada?
Pai - Isso não paga nem um décimo do que a terra vale.
Mãe - Um décimo? Temos aqui dinheiro para toda a vida e ainda te queixas!
Filho - (Espreita também e gesticula) Andando...andando...
Pai - Pensa no teu filho. Quem é que vai aceitar o pobre diabo?
Mãe – E se ficássemos mais um bocadinho, nem que fosse até a máquina chegar!
Filho - É a máquina..lá fundo...a máquina...a ouvir...a ouvir...
Pai - (De novo sozinho) Qual máquina, nem meio máquina. Agora também este ouve coisas onde elas não estão. Dizem que vem, mas nunca há-de vir. Sei bem como é. Sempre foi assim. Dizem que vem, mas nunca chega. E para que quero eu aquele dinheiro, não me dizem? Nem para comprar porcos serve! Despachem-se!
Mãe - (Dentro de casa) Já vamos!
Pai - Eu quero é desaparecer daqui, antes que me vejam acabrunhado como um velho. Vou por ali abaixo, atravesso o vale e meto-me pelo ribeiro adentro até mais ninguém saber de mim. Que vou eu fazer para a cidade se não conheço lá ninguém? Pergunto e pergunto bem, que vou eu fazer para a cidade? Se pensam que me obrigam a ficar num outro cemitério que não seja aquele ali na vila, estão enganados. Máquina! Não há máquina nenhuma que corra comigo daqui!
Mãe - (Para o filho enquanto fecha a porta do casebre) Vá, anda, atrás do teu pai.
Pai – Antes eu tivesse ido para França enquanto era tempo!
Mãe - (Mostrando a bolsa do dinheiro) Isto é que conta. Ou pensas que é com couves que uma casa se governa?
Excerto de No Ervilhal (peça em um acto, inédita), de Jaime Rocha.
Máquinas de Escrever, TAGV, 11-04-2007. Leitura da peça em um acto «No Ervilhal», de Jaime Rocha, por António Mortágua, Alexandre Lemos e Ana Beirão. Fotos de Pedro Dias da Silva.
Eram inúmeras as perguntas possíveis. De onde vêm as ideias para uma cena ou uma peça? Como se definem as personagens e as situações? Como se desenvolvem os diálogos? Como se definem as acções em palco e os adereços? Como se sabe que uma cena ou acto chegou ao fim? O desenvolvimento das cenas surpreende quem escreve? Há uma ideia inicial da estrutura da peça, ou as cenas vão-se somando umas às outras sem essa ideia prévia? A ordem das cenas e dos actos corresponde à ordem de escrita, ou resulta de uma reordenação posterior? A dramaticidade das situações e dos conflitos é descoberta no acto de escrita? Ou já existe alguma noção prévia? E, se existe, qual é a diferença entre esse esboço inicial, mental ou no papel, e o resultado final? Há muita reescrita e revisão, ou não? Por outro lado, quando o texto toma forma sobre o palco que relação estabelece com o original sobre papel? Que espaço há, nos textos, para aspectos específicos de encenação que transcendam o texto? Que o reescrevam cenicamente? Há uma dimensão autobiográfica na sua escrita teatral?
Foi com o exemplo de «No Ervilhal» que Jaime Rocha começou a reflexão sobre o seu processo de escrita para teatro. Começa por uma situação, muitas vezes imaginada a partir de uma observação quotidiana. Começa também por um conjunto de personagens, tão definidas quanto possível, isto é, com uma identidade social, familiar, individual. Situação e personagens, uma vez definidas, determinam a lógica de desenvolvimento dos diálogos. As falas impõem, de certo modo, a sua própria necessidade. Ou seja, o encadeamento das falas decorre das restrições criadas pela definição da situação e das personagens. Como se o autor as ouvisse a falar ou como se soubesse o que elas vão dizer. Jaime Rocha diz-nos ainda que escreve para os actores, isto é, imagina as palavras nos corpos dos actores, como palavra viva e em acção. É por isso que gosta de encomendas: escrever para um determinado conjunto de actores, ou partir de uma proposta de situação dramática, é criar mais uma restrição para o jogo combinatório de falas e personagens.
Uma parte do processo ocorre antes da escrita, como processo mental de imaginar situações, personagens e diálogos. Passam ao papel, primeiro, como marionetas do escritor, como efeitos das suas motivações e intenções; depois, ganham a densidade que advém do próprio processo de escrita, e que as vai autonomizando. Esta autonomização das vozes, no entanto, é limitada pela pré-estruturação criada pela definição das situações e das identidades das personagens. Há, portanto, um plano de conjunto que subordina o desenrolar dos diálogos. Além disso, a lógica das falas é ainda determinada pela polifonia das vozes e pela relevância similar das várias personagens. O conflito é desencadeado com frequência na própria linguagem, quando a personagem diz o que não queria dizer ou o que não sabia que ia dizer. Nessa medida, o teatro de Jaime Rocha é um teatro da palavra: da escuta da palavra e da acção da palavra.
É isso o que acontece, por exemplo, em Seis Mulheres sob Escuta (2000), cuja acção decorre numa prisão de mulheres nos anos 60, tal como é recordada por uma delas. Inês, Rosário, Mónica, Zulmira, Clara e Fátima mostram-nos, ao mesmo tempo, o princípio da polifonia das vozes, que ganham idêntica importância no conjunto da peça, e o princípio da linguagem como lugar do conflito. Revelam-nos também a definição realista das situações e da identidade das personagens, uma das características do teatro de Jaime Rocha. Um realismo que, ao entrelaçar o cómico e o trágico, não deixa de conter um veio inquietante de loucura - a falha que torna opaca para o escritor a origem do seu impulso criativo e que torna incerta para a personagem a ontologia da sua imagem do real, toldada pela fantasia do desejo e pelo pesadelo da morte.
MP