Os Livros Ardem Mal, com Pina, ponto e vírgulaUm professor de karaté ajuda a ler Pessoa? No caso de Manuel António Pina, sim. Novidades literárias e um convidado, em Coimbra e na NetJá era uma sessão mensal em Coimbra. Agora passa a ser também um blogue. E, portanto, o convidado de Fevereiro de
Os Livros Ardem Mal foi (anteontem) mas ainda é (em
http://olamtagv.wordpress.com/) Manuel António Pina, jornalista, ficcionista e poeta.
Segunda-feira, no Teatro Académico Gil Vicente (TAGV), Pina fez jus à sua inclinação para o ponto e vírgula tirando uma história de outra - como aquela vez em que o tipógrafo trocou "gostos não se discutem" por "gozos não se discutem" e, num contexto carnal, ficou muito melhor; ou a fase em que Pina pedia títulos a amigos e depois escrevia histórias para os títulos; ou quando o seu professor de karaté disse "contra a força, souplesse" e Pina aplicou isso ao duelo com Pessoa; ou o dia em que Agustina escreveu um texto simpático sobre Pina no Diário de Notícias e ele teve de telefonar para a tipografia a substituir o verso "e agora lês agustinas" por "e agora lês saramagos"; ou todos os Oliveira de Figueira que Pina encontrou pelo mundo, de Oslo a Nagasáqui.
Com Pina, como nos seus títulos, nunca é o fim nem o princípio, apenas um pouco tarde, e ainda assim talvez. Certa, só a morte, o outro extremo do amor, e entre nós e ela está o riso. Ris-te porque tens medo, citou Pina, de Bataille, como citou Borges, Pound, Elliot. Mais disse que "a memória é uma forma de sonho" e "escrever não é penoso, mas uma forma de libertação". De resto, ainda não estamos preparados para compreender a mecânica quântica e Pina já só lê jornais na Net, além de 20 ou 30 blogues por dia. "É na Net que se escreve melhor português, hoje."
Do regicídio ao 27 de MaioNesta 5ª sessão de
Os Livros Ardem Mal, a pequena plateia de meia centena de lugares - no foyer do TAGV, co-organizador, com o Centro de Literatura Portuguesa, localizado na Faculdade de Letras - transbordava para as escadas. Dado que Pina, noctívago radical, chegou um pouco tarde, os animadores - Osvaldo Manuel Silvestre, António Apolinário Lourenço, Rui Bebiano e Luís Quintais, professores em Coimbra - começaram pelas novidades.
Apolinário Lourenço levou a
Fotobiografia de Eça de Queirós feita por Campos de Matos (que deixa "completamente terminada" a polémica da mãe, levantada por Hermano Saraiva),
Lisboa Revolucionária, de Fernando Rosas, e o livrinho
Os Portugueses, de Fernando Pessoa ("O autor é bom, posso assegurar").
Osvaldo Silvestre falou de
Purga em Angola, de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, sobre o sangrento 27 de Maio de 1977, "um livro estranho, frequentemente mal escrito, com preconceitos ideológicos, mas importante" - por cerca de 30 mil pessoas terem sido mortas; pela atitude de Agostinho Neto; por "Pepetela, Mário Rui e Luandino Vieira, dois futuros prémios Camões, terem colaborado nos interrogatórios". Recomendou ainda
A Infância Emancipada de Fourier, o último livro de Adília Lopes ("Demasiado fácil de ler e demasiado difícil de perceber"),
O Burro de Ouro, de Apuleio, e
Vidro do Mesmo Vidro, de Rosa Maria Martelo, em torno da poesia portuguesa pós-61, "um livro fundamental", mesmo "suscitando discordância", que dá "uma outra versão do moderno mais inspirada em Baudelaire que em Mallarmé".
Luís Quintais propôs a biografia de Leni Riefensthal de Steven Bach (a história como pesadelo de que não nos libertámos: "Grande parte da sua vida é a desnazificar o passado, tarefa inglória"), e a "tradução magnífica" de
Orlando Furioso de Ariosto.
Rui Bebiano cruzou dois livros sobre o regicídio, um "fraco",
A República Nunca Existiu, um forte,
O Regicídio, de Maria Alice Samara e Rui Tavares. Referiu o volume de Felícia Cabrita sobre massacres na guerra colonial ("Certo facilitismo que levará a vender") e elogiou
A Morte de Portugal, de Miguel Real, em que se estabelece "o português como lobo do português".
Pina, que chegou a tempo de ouvir quase tudo, destacou o livro sobre o 27 de Maio, "inquietante e perturbador", e disse, quanto a Luandino Vieira, há anos retirado junto a Cerveira: "Interrogo-me se esta reclusão não tem a ver com um purgatório."
O próximo convidado é Ricardo Araújo Pereira.
Alexandra Lucas Coelho, Público, 13 de Fevereiro de 2008, «Caderno P2», p. 11.