A escuta primeiro, e depois a escrita. A regra do jogo proposto: revelar a escrita, mostrando-a e falando sobre ela. Como processo, como prática, como técnica, como trabalho, como mistério. Foi com o conto inédito
«O jogo literário» (2007) que Rui Zink iniciou o novo ciclo do TAGV, «
Máquinas de Escrever». Um conto que quase parecia ter sido escrito de propósito para a ocasião. Como acontece no conto «
O Bicho da Escrita» (2001), um monólogo dramático sobre o pesadelo de um mundo composto apenas por escritores, Zink escrutina neste novo texto, de forma irónica, a auto-imagem da importância do papel do escritor. A fala alarmada do último leitor do mundo, d'
O Bicho da Escrita, transfigura-se aqui na fala alarmada do escritor que poderia ter perdido a obra que nem sequer chegou a escrever.
O escrutínio do escritor é feito a partir de um acontecimento trivial: um corte de electricidade no prédio onde mora o narrador (um escritor de nome Rui), que se tinha ausentado por momentos, para ir ao café da esquina, tendo deixado o computador ligado. O acesso de fúria causado pela possibilidade de ter perdido a obra em que estava a trabalhar determina o tom do conto, bem audível nas variações de ritmo e de intensidade da voz na leitura. Despeitado por causa da alegada desconsideração dos «trabalhadores manuais», que faziam obras no rés-do-chão, pelo «trabalhador espiritual», que trabalhava no quinto andar sem elevador, o paranóico narrador vai debitando uma espécie de breviário sobre a alta missão do escritor («Um escritor devia sempre acreditar que o seu romance iria salvar o mundo. Senão para que escreveria ele?»). A lista de lugares-comuns grandiloquentes dá-nos essa auto-representação da função da escrita como revelação do mundo, dolorosa procura anagramática da «alma» na «lama». Lida retrospectivamente, a partir do desfecho, no entanto, essa lista serve em última análise para justificar o seu próprio falhanço como escritor que não está à altura da ideia que constrói de si e da escrita.
A auto-ironia narrativa torna-se retrospectivamente evidente quando nos damos conta não só de que Rui não tinha escrito nada que valesse a pena não perder («Por acaso, tiveram sorte, não só o computador estava em sleeping mode como não havia, também, nada escrito. Nada de jeito, pelo menos. O livro – o livro que nos redimiria – ele receava lamentar ter de informar, nunca seria feito.»), mas sobretudo quando a própria possibilidade de escrever a obra que nos redima é não escrevê-la («Porque a única forma de escrever, com sucesso, o romance da nossa redenção era não o escrever. Soubesse ele como o escrever, tivesse-o ele escrito, e estaríamos irremediavelmente perdidos. Assim, com alguma sorte, ainda há esperança. Se Deus quiser, claro.»). Quer dizer que o mito da criação como acto redentor já só consegue ser incorporado como derisão, que deflaciona o sublime poético no horizonte da perda como conhecimento último da vida.
Como noutros textos de Rui Zink, o jogo de vozes é sempre paródico: mesmo quando fala a sério é como se a voz do narrador fosse sempre tomada de empréstimo e ele não acreditasse verdadeiramente no que diz. Nisto reside a dimensão pós-moderna do seu jogo literário: não havendo já a possibilidade de falar em primeiro grau, isto é, sem a mediação explícita (por citação e pastiche) de outras falas e de outras escritas, também não se perdeu ainda inteiramente a possibilidade mimética, isto é, a possibilidade de representação do real através de uma ligação à experiência, ainda que indirecta e enviesada. Isto permite entender as referências que Rui Zink faz à dimensão simultaneamente autobiográfica e não-autobiográfica da escrita. Permite entender ainda a sua referência à necessidade de criar as condições de trabalho, isto é, a capacidade de escuta e de atenção aos sinais do mundo, que permitam ao corpo reconhecer o toque da inspiração.
Máquinas de Escrever 1, Rui Zink, TAGV: fotos de Mário Henriques (18-01-07).
«Isto dava que pensar. Duvidava que eles tivessem assim tanta urgência em desligar a electricidade do prédio se soubessem que eu escrevia à mão – porque aí saberiam que não o poderiam prejudicar. Nem sabia se eles eram ou não analfabetos, nem isso lhe interessava, o que poderia isso adiantar para a sua felicidade? Só sabia é que eles assim não o poderiam prejudicar. Talvez nem o tentassem prejudicar. Porque escrever à mão faria dele, de uma certa forma, um trabalhador manual (como eles), torná-lo-ia (de certa forma) um deles, e aí se calhar já não teriam tanto ressentimento. Isto era ele a especular. Nem sabia se eles sabiam que ele escrevia. Mas sabiam, claro que sabiam. Como poderiam eles não saber? As pessoas no prédio falavam, a sua empregada falava decerto com eles, trocavam por assim dizer informações, pequenas coscuvilhices sobre a vizinhança, e não havia nada que as pessoas mais quisessem saber do que aquilo que, para elas, era estranho. Aquilo que era diferente delas. E ele tinha a certeza de que, para eles, devia ser desde logo estranho que, desde que tinham chegado ao prédio para fazerem as obras do condomínio, em vez de ele andar aos saltinhos pela cidade feito pulga hiperactiva, ou pelo mundo feito rã insuflada, passasse o tempo em casa. Mas julgavam que ele era o quê? Um canguru narcísico, como os outros escritores, um bode ambulatório, um salta-pocinhas com ares de importante e um passaporte com mais carimbos que pevides numa melancia? Era isso o que esperavam dele? E o que tinha ele a ver com o que esperavam dele?»
Excerto de «O jogo literário», 2007, de Rui Zink, conto inédito, lido pela primeira pelo autor no TAGV, a 18 de Janeiro de 2007.
MP