[Arquivo-TAGV]
Richard Zenith no TAGV, 11 Outubro 2007. Foto de Martin Earl. A última sessão de Máquinas de Escrever foi, em certa medida, mediúnica. Não porque Richard Zenith aceitasse a ideia de um acesso privilegiado aos processos criativos de Fernando Pessoa só porque o longo contacto com os manuscritos, dactiloscritos e envelopes da Arca lhe permitisse, de algum modo, fazer-se veículo do autor dos gatafunhos. Antes porque, colocando-se no papel de leitor, Zenith realizou exemplarmente a mediação que a leitura constitui ao tentar comunicar, digamos assim, com o espírito dos textos através dos sinais da letra. Uma letra que, no caso de Pessoa, contém no seu desenho particular um movimento recorrente de vai-e-vem da caligrafia - a bela letra - em direcção à criptografia - a letra secreta. Ler é, começa por ser, decifrar a letra, mas, uma vez decifrada, uma vez reconhecido o alfabeto nessa linha miudinha e inclinada, nesse fio ralo e interminável de laços e pontos, não há chave que permita voltar a decifrá-la. O intérprete tem de se mediar a si mesmo.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Fernando Pessoa (27 Nov 1930)
Instado a descrever o processo criativo de Fernando Pessoa, Richard Zenith escolheu o poema «Autopsicografia», complexa arte poética sobre os mecanismos anti-expressivos de mediação que permitem falsificar a emoção verdadeira para produzir poesia. Estrofe a estrofe, foi estabelecendo relações com outros textos de Pessoa, e também com os ensaios de Edgar Allan Poe «A Filosofia da Composição» (1845) e de T.S. Eliot «A Tradição e o Talento Individual» (1919). Falou-nos, em particular, dos dispositivos de despersonalização, semelhantes ao processo de heteronímia, e da noção de correlato objectivo, que seria, segundo Eliot, a única forma de expressar emoção no objecto artístico. De acordo com esta noção, a projecção da emoção do sujeito na arte só pode ocorrer mediada através de objectos, de situações ou de acontecimentos, de carácter sensorial, que se tornem instrumento daquela emoção específica, de tal forma que, dada a presença desse correlato objectivo, a emoção possa ser evocada de imediato. Zenith sublinhou, a este propósito, a centralidade do leitor e do acto comunicativo como finalidade do acto artístico na concepção de escrita de Fernando Pessoa. Citou, a título de exemplo pessoano equivalente da comunicação por projecção objectiva, este passo do fragmento 260 do Livro do Desassossego de Bernardo Soares:
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Livro do Desassossego (2001), edição de Richard Zenith, pp. 255-256.
O exemplo que Bernardo Soares dá a seguir do sentimento humano típico comum é o da «saudade da infância perdida», que se dispõe a usar como catalizador da emoção que pretende despertar no leitor, ainda que esta evocação nada tenha que ver com o que sentiu. A descrição que imagina corresponde, de certo modo, à projecção nos objectos correlativos da emoção que deseja evocar:
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir - e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exactamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com a infância.
Livro do Desassossego (2001), edição de Richard Zenith, p. 256.
Citando um texto por si decifrado há pouco tempo (uma carta até agora inédita de Álvaro de Campos, escrita em francês e dirigida a Marinetti, c. 4 de Junho de 1915), Zenith referiu ainda outra dimensão da escrita de Fernando Pessoa: o facto de a sua experiência com a linguagem e com a escrita ser, também, uma experiência com o ser, com as possibilidades de ser contidas no acto artístico. O solipsismo sensacionista de Álvaro de Campos leva-o a escrever isto nessa carta aos futuristas:
O que é a arte? Ora, é apenas arte. Para mim, sou eu. Para vós - não para mim - seríeis vós, mas vós nunca sois vós, mas sim sempre o outro. Vós sacrificaste-vos à arte, quando não deveria haver outra arte, para vós, senão vós mesmos. O vosso esforço é um esforço abstracto, enlouquecido de devir...Obra Essencial de Fernando Pessoa Vol. VII: Cartas (2007), edição de Richard Zenith, p. 115.
No fragmento 139 do
Desassossego, é também evocada a possibilidade de coincidência entre vida e escrita. A escrita é a prótese intensificadora do estado de consciência da consciência, que parece constituir para o guarda-livros o atestado mental da existência do sujeito que nele habita, isto é, que mora na escrita que o produz, que o faz ser. Privado da escrita, este sujeito está condenado a durar, a dormir por detrás do trabalho, a respirar sem se sentir respirar. No momento da escrita, o discurso ensimesmado desse proto-ser, enovelado na concha do seu próprio pensamento, abre-se às sensações que os ouvidos e os olhos lhe trazem como efeito do despertar que intensifica a sensação no acto de despertar para si mesmo. É na presentificação de si perante si mesmo que a escrita se revela como correlata do acto de existir, aumentando a autopercepção de si e a autopercepção do mundo fora de si:
Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no aprodecimento há fermentação.Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora - visto com ouvido - o som súbito do eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores joverns, o sussurro esquecido da cidade viva.Há muito tempo que não sou eu. Livro do Desassossego (2001), edição de Richard Zenith, pp. 156-157.
Mas a escrita que lhe permite inventar-se e outrar-se nessa invenção, revela-lhe também o buraco no centro dos signos, a loucura contida no vazio simbólico da linguagem, a impossibilidade dessa existência escrita do eu, como no fragmento 355:
Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.
Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.
Livro do Desassossego (2001), edição de Richard Zenith, p. 325.
MP