[Arquivo-TAGV]
William Blake, The Book of Thel (1789), exemplar J, gravura 6 (pormenor). © The William Blake Archive. Marionet, As Portas da Percepção, TAGV, 23 Novembro 2007. Foto © Francisca Moreira. Num certo sentido, as visões de William Blake são criações multimédia e inter-média. Ao combinar desenho, gravura, tipografia e pintura, Blake procurava um meio adequado para ligar a materialidade da escrita e a materialidade do desenho. A gravura impressa iluminada é esse meio intersemiótico que desfaz a divisão entre reprodução tipográfica, reprodução gravada e original desenhado e pintado. Daí que o visionarismo da sua efabulação mitológica tenha equivalente na experimentação tecnológica que ocorre na oficina do gravador. As imagens arrancadas à chapa pelo ácido nítrico são um correlato das imagens arrancadas à mente pelo delírio poético. Para o leitor, umas e outras tomam a forma inter-média do texto visual, situado entre a plasticidade icónica do desenho e a plasticidade abstracta da letra e da língua. O desejo de limpar a percepção, extirpando-a dos pré-condicionamentos que limitam os seres humanos, manifesta-se nessa concepção da imagem como revelação do mundo.
Ao referir-se às «portas da percepção», Blake revela consciência da dimensão perceptual e material do conhecimento, isto é, da vinculação do nosso conhecimento do mundo às interacções físicas e fisiológicas que permitem aos órgãos dos sentidos processar as impressões e sensações (auditivas, visuais, tácteis, gustativas, olfactivas) produzidas no contacto do corpo com a matéria do mundo. Esta vinculação orgânica do corpo animal ao ambiente ocorre também no processamento simbólico e conceptual que, através da linguagem e do pensamento, lhe permite dar sentido àquilo que sente. De certo modo, a percepção seria a sensação tornada consciente graças à mediação simbólica. Considerado na sua materialidade fisiológica, o acto de ver, por exemplo, depende da excitação do nervo óptico pelos fotões reflectidos pelos objectos e filtrados pela lente do olho que os faz convergir sobre a retina. Mas a imagem dos objectos que se produz no córtex visual é re-representada também por meio do processamento simbólico, que reproduz uma determinada forma de ver. O objecto visto é já o objecto representado. É esta limitação da percepção à materialidade dos órgãos sensoriais e aos dispositivos culturais que cristalizam a representação das percepções que parece ao narrador d' O Casamento do Céu e do Inferno um estreitamento da percepção humana: «Se as portas da percepção se vissem limpas, tudo apareceria ao homem tal como é, infinito. Pois o homem encerrou-se até ver todas as coisas pelas fendas estreitas da sua caverna.»
William Blake, The [First] Book of Urizen (1794), exemplar A, gravura 23. © The William Blake Archive.
Marionet, As Portas da Percepção, TAGV, 23 Novembro 2007. Foto © Francisca Moreira.
Limpar a percepção parece significar duas coisas diferentes. Significa ser capaz de perceber mais do que aquilo que resulta de uma perceptualidade meramente exterior, limitada às interacções materiais entre órgãos e objectos. Nesta acepção, significaria considerar a perceptualidade interior, enquanto faculdade de produzir imagens não objectivas, como uma tentativa de percepcionar além dos limites da percepção. Ao aplicar a metáfora de William Blake às suas experiências alucinogéneas, Aldous Huxley investigava precisamente a capacidade psicotrópica de produção de imagens extra-perceptivas. Por outro lado, abrir a percepção significa também libertar a representação das «grilhetas mentais» que constrangem a forma de dar sentido ao que se sente. Para que a infinitude do mundo se revele ao ser humano seriam precisas quer a libertação de uma visão meramente exterior, que é incapaz de imaginar a interioridade dos seres e das coisas, quer a libertação dos hábitos que reduzem o sentido dos seres e das coisas àquilo que se pode ver através da fenda estreita das convenções. Ser capaz de ver mais, de ver outras coisas, de ver o que o acto de ver impede de ver é a fantasia libertária contida nesse desejo de comunhão com o infinito da matéria e do mundo. O dilema do ser consciente da sua própria mortalidade poderia enunciar-se talvez deste modo: como sentir a infinidade do mundo e como dar sentido à infinidade sentida, se as portas que nos permitem dar sentido ao que se sente são as que nos impedem de ver essa infinidade?
William Blake, The Song of Los (1795), exemplar B, gravura 8. © The William Blake Archive.
Marionet, As Portas da Percepção, TAGV, 23 Novembro 2007. Foto © Francisca Moreira. O espectáculo As Portas da Percepção, uma criação da Marionet, com direcção artística de Mário Montenegro, parte de uma colagem de excertos de sete livros de William Blake: O Casamento do Céu e do Inferno (1790), O Livro de Thel (1789), O [Primeiro] Livro de Urizen (1794), A Canção de Los (1795), O Livro de Ahania (1795), Visões das Filhas de Albion (1793) e Cantigas da Inocência e da Experiência (1794). O prólogo é composto por uma «Visão Memorável» da tipografia infernal e o epílogo é constituído pelo poema «A Rosa Doente». Entre um e outro momento vemos as cenas com Thel, Urizen e Los, Enitharmon e Orc, Ahania, e, por último, Oothoon, Bromion e Theotormon.
Apesar de uma estruturação dialéctica, recheada de forças e impulsos contrários, e da existência de diálogos e de acções descritas de forma narrativa, os textos de William Blake não se prestam facilmente a uma leitura cénica. O seu dramatismo parece ser sobretudo de ordem visual e verbal. Por isso se deve sublinhar a criatividade da Marionet, que é manifesta a vários níveis: desde logo numa definição clara das personagens, capaz de as diferenciar entre si e de transmitir os vários matizes dos seus conflitos interiores nos momentos dramáticos da narrativa de cada uma. Vemos Thel interrogando-se sobre a natureza do desejo sexual e sobre o seu destino de mulher mortal. Vemos Oothoon lamentando-se por ter sido rejeitada por Theotormon. Vemos Los a criar o sol e a acorrentar Urizen. Da fantasmagoria do universo imaginado por Blake a Marionet conseguiu extrair o intenso dramatismo que sustenta esta leitura cénica, cuja dimensão plástica e inter-média se deve sublinhar. Tanto mais que o texto é seguido ipsis verbis e as imagens das gravuras de William Blake são incorporadas nas marcações e posturas cénicas assumidas: em cada um dos quadros da peça há posições e movimentos dos actores que são recriações das gravuras (por exemplo, nas posições corporais de Thel, de Urizen, de Los, de Theotormon, d' as filhas de Albion, etc.), como se um determinado momento da peça pudesse ser parado e transformado numa das imagens dos livros, ou como se imagens dos livros pudessem ganhar movimento e dar a ver, sobre o palco, a sequência de movimentos anterior ou posterior àquela que a gravura fixou.
William Blake, Visions of the Daughters of Albion (1793), exemplar C, gravura 10 (pormenor). © The William Blake Archive.
Marionet, As Portas da Percepção, TAGV, 23 Novembro 2007. Foto © Francisca Moreira.
Mas esta leitura cénica do texto desdobra-se ainda noutras dimensões: àquela leitura corporal do texto, acresce a leitura vocal, que desmultiplica a personagem nos seus interlocutores e na instância narradora - como acontece nos diálogos de Thel com o lírio, a nuvem, o torrão de argila e o verme -, ou que desmultiplica a mesma voz por vários corpos, como acontece com Oothoon no quadro final. Refira-se ainda a leitura que os figurinos fazem das gravuras, inspirando-se nelas directamente, no caso de Thel ou no caso de Los, o criador metalúrgico, ou refigurando-as de forma metafórica, como acontece com o fato de hóquei, para simbolizar a divisão da matéria original que dá forma aos órgãos de Urizen, protótipo da substância mortal doravante confinada aos limites dos sentidos e da razão conceptual. Leitura cenográfica e leitura corporal conseguem sugerir quer o processo metamórfico da matéria e dos seres míticos, quer a transição de escalas entre a criação cósmica e a criação humana, quer ainda a emanação do masculino em feminino e do feminino em masculino. A projecção no fundo do palco ora recontextualiza os processos de criação dos seres numa escala cósmica, ora transfigura os cenários naturais que evoca, como acontece no quadro inicial com os pixeis das ervas ondulantes ou no quadro de Los e Urizen com os pixeis do universo estelar.
William Blake, «The Sick Rose», Songs of Innocence and of Experience (1794), exemplar V, gravura 39 (pormenor). © The William Blake Archive. Marionet, As Portas da Percepção, TAGV, 23 Novembro 2007. Foto © Francisca Moreira.
A leitura digital, isto é, a que resulta da interacção entre as imagens sintéticas projectadas e os sons sintéticos, por um lado, e as acções que decorrem em palco, por outro, constitui outra das dimensões plásticas desta leitura cénica da mitologia blakeana. A natureza fantasmagórica do acto criativo - aquilo que o acto criativo contém de projecção de imagens e de fantasmas, e de luta para fazer nascer uma forma a partir dessa projecção informe - é evocada pelos riscos, traços e formas abstractas que se recombinam ciclicamente no écran, marcando também, nas mudanças de padrões, cores e movimentos, as transições entre quadros. No conjunto cénico das diversas materialidades que compõem o espectáculo (corpo e voz, luz, coreografia, música digital, poesia, imagem sintética, etc.), «As Portas da Percepção» consegue revelar-nos até que ponto é ainda possível ler a obra de William Blake, ressignificando-a e oferecendo a uma nova percepção as formas imaginárias nela contidas.
MP