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Olhar para trás significa tomar consciência do caminho percorrido. Que é também um caminho construído. Pelas decisões de programação e produção tomadas. Pelos constrangimentos que condicionaram essas decisões. E pela conjunção dos factores aleatórios que ocasionaram encontros entre artistas e público num certo dia do ano. Trata-se de construir uma visão do todo a partir dos vestígios gráficos e documentais. Reorganizar ainda uma vez mais a proliferação de signos, de gestos e de sentidos. Truque destinado a fixar o que não se consegue fixar. A passagem do tempo e a passagem da memória da passagem do tempo. Perceber o que se fez a partir de um ponto de fuga. Encontrar uma perspectiva. Ou mais do que uma. Rodando a cabeça na direcção oposta é quase possível antever o caminho. Que é como quem diz prospectar. Como fazer? Como fazer melhor?
Junho começa da melhor forma: com a primeira parte dos «Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra». Poderemos ver IMI Kollektief, The Thing vs Scorch Trio e Mário Pavone Quintet. O dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, é assinalado por um concerto didáctico, programado também no âmbito do Festival de Jazz. A programação educativa contará ainda com a colaboração do Conservatório de Música de Coimbra, a 9 de Junho. O pianista José Eduardo Martins interpreta Fernando Lopes-Graça e Alexander Scriabine. No que diz respeito ao teatro, refiram-se as produções «Mal Vistos» de Gemma Rodriguez, pelas Visões Úteis, e também duas criações locais com estreia no TAGV: o espectáculo concebido por Mickael de Oliveira «à espera, adeus, eu fico», e ainda a nova produção do Teatro do Morcego, «Senhora D.», de Hilda Hilst. Concretizando os princípios contidos no protocolo assinado no passado dia 27 de Março, o TAGV dispõe-se a apoiar a experimentação dramatúrgica e performativa em Coimbra. Por fim, refira-se a programação do Videolab, que nos traz mais uma amostra da vitalidade actual do vídeo.
Os campos enchem-se de papoilas e o mês de Maio volta a ser o mês feliz que costuma ser. O novo espectáculo do GEFAC, «A Água Dorme de Noite», volta ao TAGV. Acolhemos uma extensão do festival Indie-Lisboa, com seis sessões, uma das quais para a crianças. A programação para a infância será completada pela Encerrado para Obras. Mas o grande destaque vai para uma produção da casa: «Beckett no TAGV», um pequeno festival destinado a celebrar a obra de um dos grandes autores do século XX, no ano em que se assinala o centenário do seu nascimento. Graças a um programa multidisciplinar, que cruza cinema, teatro, rádio, fotografia e literatura, a obra de Samuel Beckett (1906-1989) poderá ser conhecida e apreciada em múltiplas facetas. O pianista Filipe Pinto-Ribeiro e o Shostakovich Ensemble apresentam obras de Dmitri Shostakovich (1906-1975), cujo centenário se comemora igualmente em 2006. Por último, mas não o último, refira-se a presença do poeta norte-americano Charles Bernstein, figura cimeira de uma poética centrada na crítica da linguagem como instrumento de opressão.
O ano corre sempre mais depressa do que se imagina. E a imaginação voa sempre mais alto do que seria prudente. Mas de um Teatro, e do público que faz um Teatro, espera-se que estejam à altura dos artistas. Do desafio que estes lhes lançam. Ao perscrutarem o real com a linguagem e com o corpo, e com a luz, e com o som. Em Abril, este repto é coreográfico, musical e cinematográfico. «O Amor ao Canto do Bar Vestido de Negro», última criação da Companhia Olga Roriz, sobe ao palco no dia 6. O centenário do nascimento do compositor Fernando Lopes-Graça é assinalado por três recitais. Bernardo Sassetti traz-nos «Alice», meticulosa e obsessiva sonorização da inquietação a chover na vida. Os «Caminhos do Cinema Português» revelam, de novo, a produção cinematográfica e videográfica nacional, nos seus vários géneros e formatos: curtas, longas, animação, documentário, película, digital. Prossegue a programação para as escolas, com destaque para a música e o cinema. O ciclo «escrileituras» recebe Manuel António Pina e Winnie-the-Pooh, uma parelha sui generis.
A pouco e pouco, a actividade do TAGV aproxima-se de uma lógica que combina produzir, programar e formar. No mês de Março, anunciando porventura a Primavera, este equilíbrio triangular começa a despontar. O mês abre com a VIII Semana Cultural da Universidade de Coimbra, de que destacamos a «História Trágico-Marítima» de Fernando Lopes-Graça e o pequeno ciclo de cinema «Mar Português». Contrariando a maré melancólica, a quarta edição do Festival de Blues de Coimbra está de novo de pé. É justo também destacar-se um dos espectáculos teatrais mais fabulosos da temporada: «Os Encantos de Medeia», pelo Teatro de Marionetas do Porto, com que o TAGV comemora o Dia Mundial do Teatro. Assinam-se, neste dia, protocolos de colaboração com os grupos e cursos de teatro de Coimbra. Começa a tomar forma um Serviço Educativo. Lançamentos, debates, mesas-redondas e leituras tomam conta do Café-Teatro. O público acorre e participa, comovido e encantado.
Como é habitual, o mês de Fevereiro no TAGV volta a ser preenchido por uma selecção de alguns dos melhores filmes do ano anterior. Desta vez poderemos ver, ou rever, obras de Jafar Panahi, Fatih Akin, George Romero, Tim Burton, Marc Forster, Clint Eastwood, Gus Van Sant e Park Chan-Wook. Destacamos ainda «Memórias de um Sábado com Rumores de Azul», uma produção em que a Companhia Paulo Ribeiro revisita algumas das suas coreografias dos últimos dez anos. Este é a primeira de um conjunto de companhias de dança que queremos continuar apresentar nos próximos meses. Assinale-se também a última produção dos Artistas Unidos, Orgia, a partir de um texto de Pier Paolo Pasolini, cujos poemas se poderão ouvir no Café-Teatro. Prossegue entretanto o ciclo «escrileituras», com Hélia Correia e a obra Antígona, de Sófocles.
O TAGV deve poder aplicar na programação um conjunto de critérios que mostrem a existência de uma intencionalidade e de uma política cultural para a comunidade universitária e para a cidade de Coimbra. Isto significa, entre outras coisas, a capacidade de contratar espectáculos e criações numa modalidade contratual em que seja possível assumir riscos financeiros. Significa também a capacidade de assumir produções próprias. Só assim se pode criar uma relação dialéctica entre servir o público e formar o público. É certo que há áreas, como o cinema e os vários géneros de música pop, nacional e internacional, ou de música do mundo, em que é possível uma programação de alta qualidade mesmo nas condições actuais. O mesmo não se pode dizer, todavia, da música erudita ou do jazz, nem do teatro, e ainda menos da dança, seja em formas clássicas, seja em formas contemporâneas. Num momento em que as três fontes de financiamento público do TAGV (Universidade de Coimbra, Ministério da Cultura e Câmara Municipal) sofreram cortes nos seus orçamentos, o dilema é, mais uma vez, o que fazer agora?
Entre os projectos de programação para a temporada 2005-2006, quero destacar os ciclos de cinema. Uma parte muito significativa da interrogação do mundo através do cinema é feita com instrumentos narrativos e fílmicos diferentes daqueles que dominam os circuitos de distribuição. É redundante portanto sublinhar a importância de uma programação alternativa, que permita conhecer cinematografias, géneros e autores que alargam o campo de referência da palavra cinema. Além disso, este conhecimento multicultural e multilingue da produção do presente deve enriquecer-se com o conhecimento da história do cinema. Em colaboração com o Fila K-Cineclube, com o Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra ou com outras iniciativas colectivas e individuais, o TAGV procurará alargar a oferta de cinema. Documentário, animação, curtas-metragens, uma geografia mais vasta, autores clássicos, ciclos temáticos – com estes formatos, géneros e princípios em mente se fará o programa de cinema, que em Dezembro é dedicado a Rainer Werner Fassbinder.
A identidade do TAGV constrói-se também através dos projectos de programação e produção próprios, organizados sob a forma de ciclos, encontros, mostras e festivais. Estes projectos têm ainda uma importante dimensão adicional, pois nascem muitas vezes de iniciativas de locais, permitindo cimentar relações de colaboração com associações de especialistas nas áreas em causa. O capital de conhecimento necessário à programação encontra-se disseminado na sociedade. É por isso importante perceber que uma parte da função de programar consiste em apoiar esta capacidade de iniciativa, em que paixão e conhecimento se aliam. Os «Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra» são um desses projectos. Lançados em 2003, por iniciativa da associação Jazz ao Centro Clube e com apoio da Câmara Municipal de Coimbra, estes Encontros vieram colocar a cidade de Coimbra no circuito nacional dos concertos e festivais de jazz, com um conjunto de músicos norte-americanos e europeus de primeiro plano. A 3, 4 e 5 de Novembro decorre o segundo momento dos Encontros de 2005. Desta vez estarão no TAGV Aldo Romano, Louis Sclavis e Henri Texier, o Alberto Conde Trio e o Quinteto de Fredrik Nordström. É com expectativa e entusiasmo que o TAGV abre de novo as portas ao jazz.
Reforçar a qualidade e a coerência da programação, repartindo-a de forma aproximadamente idêntica pelas áreas do teatro, do cinema, da música e da dança. Em cada uma destas áreas, acolher produções de repertório clássico e criações contemporâneas. Fazê-lo com a preocupação de representar diversos géneros e práticas artísticas. Alargar a colaboração com outras instituições e a programação em rede. Manter os festivais anuais e bienais. Construir também um público infantil e um serviço educativo. Acolher debates, lançamentos e exposições que possam constituir um espaço público de comunicação sobre práticas sociais, científicas e artísticas contemporâneas. Garantir e reforçar a participação do Ministério da Cultura e da Câmara Municipal de Coimbra no orçamento. Continuar a fazer do TAGV um interface privilegiado da relação entre a Universidade de Coimbra e a comunidade. Parece demais, mas é o que TAGV tem de facto tentado fazer nos últimos anos. Recomeçar significa portanto continuar. Significa tentar fazer melhor. Sabendo que servir o público é, ao mesmo tempo, construir o público.
MP